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Juliana Carpanez Do UOL, em São Paulo 15/09/2018 04h00
A pessoa precisa de um tratamento caro de saúde, ao qual não tem acesso. Cria uma campanha na internet para arrecadar fundos. Um famoso compartilha, as contribuições sobem. A estratégia funciona, e o doente obtém cuidados antes inacessíveis. Esse é o final feliz. Em alguns casos, no entanto, a conclusão é outra: em vez de promover a saúde, o dinheiro arrecadado acaba financiando compras e viagens, por exemplo. Esses golpes ganham repercussão, assustam possíveis doadores. E aquela pessoa do começo dessa história deixa de receber as doações que poderiam representar a diferença entre vida e morte.
"As fraudes são exceção. Na grande maioria das campanhas, as pessoas realmente precisam daquela ajuda e comemoramos junto com elas quando conseguem”, diz Cristiano Meditsch, sócio da plataforma de arrecadação Vakinha. Neste site, há dez anos no ar, as campanhas mais bem-sucedidas são automaticamente expostas na página principal. E os destaques vão quase sempre para casos de saúde, mostrando a adesão à prática de pedir e doar dinheiro para tratamentos --levando em conta que, no país, nem de longe esse direito é garantido a todos os cidadãos.
A questão que surge é como pessoas sensíveis a essas causas podem contribuir sem serem lesadas. Porque, neste contexto de solidariedade, ao fazer o bem é importante olhar a quem. Uma forma de colocar isso em prática é seguindo as seis dicas abaixo.
1. Pesquise, pesquise, pesquise
Ao decidir colaborar com uma campanha, pesquise. Leia os comentários nas redes sociais, coloque o nome da campanha e dos autores no Google, busque informações em diferentes sites. Se houver alguma irregularidade, talvez a encontre assim.
2. Aquela pessoa existe?
A campanha precisa ter o contato de seus autores (e-mail, telefone, perfis em redes sociais). Verifique se a identidade dessa pessoa é consistente e coerente, levando em conta suas fotos em diferentes sites e sua localização, por exemplo (ela faz postagens na cidade onde diz morar?). Se tiver alguma dúvida, pergunte e aguarde resposta.
3. Aquela doença existe?
O laudo médico é a prova de que a doença existe e pode trazer informações valiosas para fazer as pesquisas, como já recomendado acima. Se a arrecadação é para comprar remédio X, por exemplo, esse medicamento deve estar associado àquela mesma doença.
4. Cobre transparência
Quanto dinheiro foi arrecadado? Como o valor será usado? Com que periodicidade essas informações serão divulgadas? Isso tudo precisa estar claro e ser registrado nas campanhas. Se os depósitos foram feitos em diferentes contas correntes, a prestação de todas deve aparecer. Se o objetivo for comprar algo, é importante a divulgação dos recibos.
5. Famoso divulgou? Certifique-se mesmo assim
Uma campanha não é idônea porque foi divulgada por artistas, cantores, influenciadores ou até por seus próprios amigos. A mensagem de pessoas conhecidas tem mais alcance nas redes sociais, mas elas não necessariamente se certificaram sobre aquilo que recomendam (fazer o bem pode pegar bem na era dos likes).
6. Acompanhe o tratamento
Mesmo depois de já ter feito a doação, continue seguindo o autor da campanha em redes sociais e acompanhe a execução daquilo que ele prometeu fazer. Como está indo o tratamento? Houve êxito? Houve piora? As postagens continuam sendo feitas?
Suspeita teve repercussão no Brasil
Foi depois de uma campanha bem-sucedida que suspeitas de fraude ganharam destaque no Brasil. Após um casal de Joinville (SC) arrecadar mais de R$ 3 milhões, em 2017, para tratar a doença do filho, começaram as denúncias sobre a mudança em seu padrão de vida. Inclusive com postagens de uma viagem à ilha de Fernando de Noronha, no Réveillon de 2017, levando o caso ao MPSC (Ministério Público de Santa Catarina).
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Jonatas tem a doença genética AME (Atrofia Muscular Espinhal), que é degenerativa, não tem cura e pode levar à morte. O paciente sofre fraqueza muscular progressiva, dificultando sua respiração, alimentação e movimentação --muitos usam aparelhos para essas funções e há também um novo tratamento que ajuda a reverter os sintomas da atrofia. As doações seriam usadas para comprar esse remédio chamado Spinraza, fabricado nos EUA. Cada dose custa R$ 367 mil e, no primeiro ano do tratamento, são seis delas. O garoto havia tomado as primeiras doses quando começaram as suspeitas sobre seus pais, Renato Openkoski e Aline Openkoski.
Em fevereiro, a Justiça de Santa Catarina bloqueou a arrecadação da campanha “Ame Jonatas”: o total retido não foi informado. O dinheiro passou a ser liberado mediante despesas comprovadas e específicas para o tratamento do garoto. Em março, a Polícia Civil cumpriu mandado de busca e apreensão na residência alugada pelo casal de origem humilde --nenhum dos dois tem comprovante de renda. Na ocasião, comprovou-se que o garoto era bem cuidado e também que o casal gostava de comprar.
Bebidas, videogames, celulares, perfumes, sapatos, óculos, joias, camisetas de time de futebol e um carro avaliado em R$ 140 mil estavam entre os itens encontrados no local.
"Eles aproveitavam os valores destinados à criança para sua própria subsistência. Não apenas para gastos básicos, mas também para coisas supérfluas, de luxo. Além dos objetos adquiridos, eles viajaram, frequentaram baladas e restaurantes caros e chegaram a comprar uma loja de roupa. Pagaram a primeira parcela, e o negócio só não foi concluído porque houve o bloqueio das contas", afirma a delegada Georgia Marrianny Gonçalves Bastos, da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso de Joinville.
A Polícia Civil concluiu a investigação e a encaminhou para o MPSC, que agora pode oferecer denúncia contra o casal. Para a delegada, houve a prática do crime de estelionato, além de apropriação indébita (segundo o artigo 89 da Constituição, "apropriar-se de ou desviar bens, proventos, pensão, benefícios, remuneração ou qualquer outro rendimento de pessoa com deficiência").
A reportagem tentou contato com os pais de Jonatas, sem sucesso, e o escritório da advogada da família informou por telefone que não comenta o caso. Nas redes sociais, as postagens ficaram bem menos frequentes após as denúncias.
História negativa afeta outras campanhas
A repercussão teve efeito imediato no universo de campanhas para tratamento de saúde. Meditsch, do Vakinha, diz que esse caso aumentou a pressão por transparência nas arrecadações e nos gastos destinados às causas. Essa é a parte boa. A ruim, Alex José de Amorim, 38, sentiu na pele.
Morador de Florianópolis (SC), ele é pai de Artur, 8, João, 6, e Miguel, 1. Seus dois filhos mais novos têm AME e, no final de 2017, Alex criou uma campanha para comprar as doses necessárias de Spinraza (custo estimado de R$ 2,2 milhões por criança em um ano). "Eu sofri muita represália, fui muito criticado e até chamado de ladrão", resume. "A gente mostra tudo, só não publica os extratos para preservar os nomes dos doadores. Sempre prestamos contas, mostramos a veracidade da causa, mas agora tem muita gente que não quer nem saber."
Ainda assim, a família atingiu a meta e deu início ao tratamento dos dois garotos.
Nas redes sociais, os pais de João e Miguel seguem a cartilha da transparência. Divulgam periodicamente o valor arrecadado (R$ 4.515.235,70) e também mostram recibos, como o de R$ 2,2 milhões referente à compra dos seis primeiros frascos de medicamento. "Eu estava perdendo meus filhos a cada dia para uma doença cruel. Se não fossem essas pessoas, a gente não conseguiria acesso ao tratamento. A ajuda foi imprescindível, eles deram vida para meus dois filhos", afirma Amorim.
A maior doação, dos R$ 286 mil restantes para concluir a campanha, foi feita pelo jogador Roberto Firmino. Antes, houve um grande volume em quantias pequenas. A cantora Ivete Sangalo, por exemplo, convocou seus seguidores no Instagram: "Se cada um doar R$ 5, o tratamento está pago", afirmou em vídeo. "No boom das doações, o extrato tinha umas 170 páginas. Era surreal, a maioria delas de R$ 5, R$ 10", conta o pai.
Fama e fortuna
A diferença entre o sucesso e o fracasso pode estar na viralização: quando a campanha engrena e passa a ser compartilhada via internet. E a viralização, muitas vezes, passa pela chancela de atores, cantores, influenciadores.
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"As campanhas tentam ultrapassar essa barreira dos famosos, para que eles compartilhem as iniciativas em suas páginas. Faz toda diferença: quando há uma alta grande nas contribuições, sabemos que houve a legitimação de alguém conhecido. E, quando um famoso faz isso, os outros começam também a falar sobre a campanha, não querem ficar para trás", diz o sócio do Vakinha.
Voltemos ao risco de fraudes, nosso foco. Como já mencionado nas dicas lá do começo, uma informação não é verdadeira só porque vem de um famoso. E, se você doar porque confia nele, e depois se sentir enganado, não há muito o que fazer.
"Essa pessoa só pode ser considerada culpada se houver dolo, se estiver envolvida na fraude. Parto do princípio de que não está", afirma o advogado Renato Opice Blum, professor do Insper. Ele faz a ressalva de que os influenciadores precisam tomar cuidado com aquilo que divulgam, pois geram uma indução de comportamento. Neste caso, doar dinheiro.
Informação ajuda a combater os golpes
Um efeito positivo das suspeitas é que elas podem aumentar a quantidade de informações para combater os golpes --uma reação como já aconteceu com as fake news. Em julho, por exemplo, o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), divulgou um comunicado oficial sobre uma ação que arrecadava dinheiro para uma criança tratada naquele local --a polícia de Franca (SP) investiga o caso.
"Em nome da criança solicitam-se contribuições financeiras. [...] O HC informa que a paciente em questão não foi submetida a cirurgia nenhuma nas datas mencionadas nas mídias sociais. Aparentemente, a campanha apresenta informações inverídicas que necessitam ser elucidadas", diz o texto, que especifica variações do nome da mãe, associadas a diferentes contas bancárias para depósito. Uma busca com essas mesmas palavras, portanto, traz como resultado o alerta do HC.
Em Ananindeua, no Pará, doadores desconfiados denunciaram em maio duas mulheres que viviam somente de arrecadações. Mãe e avó de D., 10, elas falavam que o garoto havia nascido com o vírus da Aids e tinha câncer nos olhos --em fotos, na internet, ele aparecia usando um tampão. Policiais foram até a casa da família, e os próprios vizinhos apontaram a fraude. Ou seja: neste caso, a doença nem existia.
"Comprovou-se que o garoto é saudável e ele foi encaminhado ao conselho tutelar. As mulheres confessaram o crime e estão sendo investigadas pela prática de estelionato. O inquérito está em fase de conclusão", contou o delegado Marcelim Soares do Nascimento Junior. Na época em que a notícia veio à tona, falou-se que as mulheres arrecadaram cerca de US$ 3 mil, porém, o chefe da delegacia da região avalia ser muito mais. "Elas são bastante humildes, mas nada justifica enganar os outros."
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/09/15/vaquinha-online-tratamento-de-saude.htm