Por NATÁLIA OLIVEIRA
01/06/20 - 03h00
Sem água até mesmo para matar a sede, população do Norte de Minas e dos vales do Jequitinhonha e do Mucuri tem dificuldade para manter a higienização contra a Covid-19
Foto: Alexandre Motta
O rio baixando de nível até secar; as árvores esturricadas pelo sol; o sertanejo com o balde na cabeça ao lado de seu animal cada vez mais magro. As imagens que se formam na imaginação de quem lê essas frases resultam em um cenário: a seca. Assim ficam cerca de 150 cidades do Norte, do Vale do Jequitinhonha e Vale do Mucuri, em Minas Gerais, todos os anos, a partir de maio. Essa projeção, já triste, se somou a um novo inimigo neste ano: a pandemia de Covid-19. Sem água nem mesmo para beber, o desafio para Estado e municípios será ajudar as pessoas a manter a higienização necessária para evitar o contágio e a disseminação da doença.
“A urgência pela água já era grande, mas agora se tornou maior, já que as pessoas precisam lavar com frequência as mãos, as roupas e as superfícies. O problema é que, se não tem água nem para beber e cozinhar, como cuidar da limpeza e da saúde?”, questiona o prefeito de São Romão, no Norte de Minas, Marcelo Meireles (PSDB), enquanto vai formatando soluções para ajudar os 12.337 moradores da cidade.
“Na zona rural, já falta água, estamos nos virando com caminhão-pipa do município e vamos ajudar os moradores ao máximo, mas vamos precisar de ajuda dos governos do Estado e federal”, diz o prefeito. O município tem dois casos confirmados de Covid-19.
A realidade de São Romão se repete em várias outras cidades, principalmente do Norte e do Vale do Jequitinhonha. No último dia 20, o governo de Minas decretou situação de emergência em 129 municípios que historicamente sofrem com a seca.
O objetivo, segundo a Defesa Civil do Estado, visa obter R$ 9,5 milhões para Minas usar em operações de distribuição de água potável e de cestas básicas para as famílias atingidas. A expectativa é que o dinheiro esteja disponível em até três meses.
No ano passado, Minas pediu R$ 4,8 milhões no decreto estadual para seca e estiagem. “O valor solicitado para o governo federal para distribuição de água potável e cesta básica foram majorados tendo em vista os impactos da Covid-19”, explica o coordenador adjunto da Defesa Civil de Minas Gerais, tenente-coronel Flávio Godinho.
Mecanismos
Para lidar com a escassez de água, os prefeitos usam artifícios dos anos anteriores: caminhões-pipa, cisternas de cimento que captam e guardam a água do período chuvoso, caixas-d’água extras e poços artesianos – uma perfuração profunda para retirar água do solo. Já para cumprir a exigência de higienização constante das mãos e das superfícies para impedir a contaminação pelo novo coronavírus, a alternativa encontrada foi a distribuição de produtos para limpeza, como álcool em gel e água sanitária.
Foram nessas medidas que a Prefeitura de Capitão Enéas, também no Norte, apostou para combater a doença, que já contaminou sete pessoas da mesma família na cidade. O Executivo distribuiu álcool em gel para parte dos 15.234 moradores. Além disso, contratou uma empresa para higienizar ruas e superfícies onde há maior movimento de pessoas.
Queda
Os economistas avaliam que o início do período de seca realmente vai piorar o cenário econômico das cidades afetadas e do Estado como um todo. “Na seca, temos perda de safra, e isso impacta o preço do produto e o Produto Interno Bruto (PIB) do Estado”, analisa Vaníria Ferrari, professora de economia no Centro Universitário UNA
Prejuízos em 2019
Em toda Minas Gerais, os prejuízos com as perdas na agricultura e pecuária somaram R$ 1,8 bilhão, de acordo com dados da Defesa Civil do Estado.
‘Vamos contar com prefeitura e governo’
Quem vive na pele o período anual de seca já se acostumou a ter pés calejados pelo sol quente, após caminhar horas com o balde de água na cabeça. No entanto, neste ano, a dificuldade de lidar com uma doença desconhecida e a estiagem ao mesmo tempo resultaram em muito medo.
“Ainda tem a questão das roupas para lavar, que aí é que vai precisar de água mesmo”, diz o agricultor José Alves, 65, que mora em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha. “A esperança é ter produtos para ficar tudo higienizado direitinho e não pegar doença. Dinheiro para comprar produto não vai ter. Vamos contar com a prefeitura e o governo”, relata, esperançoso, o agricultor.
“Uma possível falta de água agrava a situação da limpeza e leva à disseminação do vírus, uma vez que um dos critérios mais fáceis de desinfecção é lavar as mãos e as superfícies com água e sabão”, lembra o infectologista Leandro Cury. Segundo ele, uma alternativa é usar álcool em gel nas mãos e produtos de limpeza nas superfícies.
Dificuldade financeira na zona rural
Quando a secura atinge o solo e começa a mudar a paisagem da comunidade de Teixeirinhas, em Itinga, no Vale do Jequitinhonha, a produtora rural Neide Nunes, 62, sabe que a situação financeira vai apertar. É assim todos os anos a partir de maio, mas em 2020 o tormento de quem sobrevive do campo começou mais cedo.
As feiras livres na área urbana onde os trabalhadores vendem seus produtos foram interrompidas entre março e abril por causa da pandemia, e o dinheiro começou a reduzir antes mesmo de a plantação secar. “A partir de junho, vai piorar. O chão seca e não tem como plantar. Quando chegar setembro, não sei como vai ser. É desse mês que temos mais medo”, salienta.