Por GABRIEL RODRIGUES
18/08/19 - 06h00
“Ninguém gosta de admitir que não está funcionando bem na sociedade”, diz Lana Kantor - Foto: Flávio Tavares
Cerca de 322 milhões de pessoas têm depressão no mundo – no Brasil, onde a prevalência do transtorno está acima da média internacional (4,4%), alcançando 5,8% da população, são 11,5 milhões de pessoas. A Organização Mundial da Saúde alerta que, até 2020, a doença será a maior causa de incapacitação no mundo – fala-se em perdas anuais de US$ 1 trilhão.
O cenário fica ainda mais preocupante quando se leva em conta que metade dos casos está sem tratamento. E mais de 40% dos pacientes que se tratam abandonam os remédios nos primeiros 30 dias, percentual que sobe para 52% no segundo mês e chega a 72% no terceiro. As principais razões alegadas são os efeitos colaterais dos medicamentos: ganho de peso, disfunção erétil e dificuldade em atingir o orgasmo.
“Já estou deprimida, e agora querem que eu fique gorda e careca?”, brinca a líder de marketing Lana Kantor, 24. Diagnosticada com a doença aos 17 anos, já tomou muitos remédios diferentes. Conscientes desse desafio, cientistas, médicos e indústria farmacêutica se debruçam sobre novas abordagens de tratamento e sobre o desenvolvimento de medicamentos com menos efeitos colaterais.
“O tratamento hoje é ‘tailor made’ (feito por alfaiate), adaptado a cada pessoa e ao seu estilo de vida”, diz Kalil Duailibi, professor de psiquiatria da Universidade de Santo Amaro (Unisa).
Nos consultórios, a recomendação não é mais apenas amenizar sintomas, mas buscar a recuperação plena do paciente, até que ele esteja funcional em todas as áreas da vida. Não é tarefa fácil. Um estudo de David Vincent Sheehan, uma das referências da área, mostrou que menos de uma em cada quatro pessoas voltou à vida normal depois de se tratar.
A dificuldade não é a falta de opção de medicamentos, como antes – Duailibi diz que só os casos muito severos eram tratados quando os primeiros remédios surgiram. Agora, difícil é escolher a melhor combinação de medicamentos entre os vários disponíveis.
Avanços
Nesse contexto, a inteligência artificial (IA) é uma das esperanças. Estudo publicado em 2019 pela Sociedade Americana de Farmacologia Clínica e Terapêutica mostrou que é possível utilizar a IA para prever, antes da prescrição, quais remédios vão fazer efeito em cada paciente. A IA avalia testes farmacogenéticos, que mapeiam o DNA e assinalam como diferentes genes reagem às opções.
Psiquiatras consideram o campo promissor, mas lembram que ele está no início. “A psiquiatria é uma das últimas fronteiras para a IA por causa da complexidade que existe além dos circuitos cerebrais. Há emoções envolvidas, e é difícil ensinar uma máquina a trabalhar com isso”, diz Roberto Miotto, professor da PUC Rio.
Ele próprio solicita testes farmacogenéticos a alguns pacientes e reforça mais uma frente de investigações contra a depressão: probióticos, alimentos com micro-organismos vivos. Isso porque se percebe cada vez mais a proximidade entre sistema gastrointestinal e transtornos mentais. Miotto indica pelo menos três que podem ajudar no tratamento: Lactobacillus acidophilus, Bifid bifidum e Lactobacillus casei.
Em entrevista concedida a O TEMPO no 8º Fórum de Sistema Nervoso Central da América Latina, da empresa farmacêutica Pfizer, Toba Oluboka, professor de psiquiatria da Universidade de Calgary, no Canadá, diz que a tendência agora é iniciar o tratamento com “força total” – em vez de “começar e evoluir devagar” –, ainda que isso signifique doses maiores de medicação. Se não houver resultado em duas ou quatro semanas, diz, seria hora de trocar o remédio.
Riscos do abandono
“A implicação de descontinuar é o alto risco de recaídas mais fortes. Após três episódios depressivos, a chance de o paciente ter que se tratar pelo resto da vida é alta”, segundo Oluboka.
Ele defende que o médico entenda bem as necessidades pessoais do paciente antes da prescrição. Mas nem sempre a pessoa encontra ouvidos atentos no consultório. “Os médicos só diziam ‘toma essa remédio’, sem levar em conta o cotidiano”, diz Lana Kantor. Hoje, sete anos depois do diagnóstico, ela controla a depressão com psicanálise.
Teste confirma efeito
Uma pesquisa publicada em 2018 na revista científica “The Lancet” e liderada pela Universidade Oxford passou um pente-fino em 21 antidepressivos e comprovou: os remédios funcionam.
Spray nasal é aposta para casos de urgência
Aprovado em fevereiro nos Estados Unidos, o Spravato, spray nasal à base de esketamina, é indicado para situações graves que envolvem ideação suicida. O medicamento age sobre o glutamato, neurotransmissor mais abundante no cérebro. Uma das grandes vantagens da inovação é a velocidade: os efeitos são perceptíveis em 24 horas.
Mas há riscos: a ketamina, anestésico do qual a esketamina é derivada, já foi utilizada como droga psicodélica. Entre os efeitos colaterais do novo medicamento está justamente a sensação de “estar fora de si”. Para evitar abusos, o remédio só pode ser utilizado em clínicas autorizadas nos EUA, e o paciente não pode levá-lo para casa. No Brasil, ainda não foi autorizado.
A solução definitiva, porém, talvez passe por uma mudança completa de hábitos. “Isso inclui remédio, terapia, atividade física, dieta adequada. E quem está ao lado do paciente tem que entender e respeitar o momento do outro”, diz o professor Kalil Duailibi.
SUS não acompanha evolução
Além dos problemas com efeitos colaterais, Lana Kantor precisou trocar de antidepressivo por causa do preço elevado – a cartela dos mais modernos pode custar mais de R$ 200 e não dura sequer um mês. “Eu precisava trabalhar para comprar o remédio, e era com ele que conseguia me levantar de manhã para trabalhar. A interrupção desse ciclo era desesperadora”, lembra.
A discussão dos médicos da rede privada é sobre a grande diversidade de remédios disponíveis. Já na rede pública, as opções são bem mais limitadas. Segundo a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG), quatro tipos diferentes de remédios são oferecidos gratuitamente no Estado. Três deles – a amitriptilina, a clomipramina e a nortriptilina – são da classe dos tricíclicos, um dos tipos de antidepresivos mais antigos, desenvolvido no final dos anos 50.
Outro é da classe dos Inibidores Seletivos da Recaptação da Serotonina (ISRS): a fluoxetina, base do Prozac, lançado no final dos anos 80. Até o fechamento desta edição, esses medicamentos tinham sido disponibilizados para cerca de 102,1 mil pessoas em Belo Horizonte por meio do SUS, só em 2019.
Melhor remédio
“Não há uma medicação superior a outra na psiquiatria. O que existe é a melhor indicação para o paciente”, diz o psiquiatra Lucas Fantini. O ideal, para ele, seria ter opções o bastante para escolher a mais adequada ao estilo de vida de cada um, de forma a driblar os efeitos indesejados. Os tricíclicos não ajudam nesse ponto, pois têm efeitos colaterais mais fortes.
“Já a fluoxetina é para depressão leve a moderada, casos em que quase nem receito medicação aos pacientes, só psicoterapia”, diz.
Em nota, a SES-MG afirma que “um medicamento ‘moderno’ geralmente possui custos mais altos e nem sempre tem eficácia superior à dos já existentes no mercado”.
Ela lembra ainda que a responsabilidade de incorporação de novos medicamentos no SUS é da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), vinculada ao Ministério da Saúde. Além disso, reforça que qualquer cidadão pode enviar sugestões para incorporar novos remédios à Relação Estadual de Medicamentos.
Os mineiros podem procurar os Centros de Referência em Saúde Mental (Cersams) e os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) para tratamento.
Minientrevista
Toba Oluboka
Psiquiatra e professor da Universidade de Calgary
“O estigma é um problema enorme relacionado a crenças, atitude frente à doença e ignorância”
Quais dificuldades funcionais a pessoa com depressão pode apresentar no dia a dia?
Grande parte dos nossos pacientes com depressão tem problemas sociais, ocupacionais e familiares. É o resultado dos sintomas da depressão, e o tratamento é para alcançar a máxima recuperação funcional possível nos contextos social, ocupacional ou familiar.
O senhor citou que a depressão traz um prejuízo de cerca de US$ 51 bilhões anualmente ao Canadá, considerando rendimento ruim no trabalho, por exemplo. Podemos presumir um prejuízo parecido em países em desenvolvimento, como Brasil?
Um psiquiatra brasileiro responderia melhor. Mas tenho certeza de que o impacto econômico da depressão é universal. A perda causada pelo absenteísmo se apresenta por todos os lados, assim como pelo “presenteísmo”, em que as pessoas vão ao trabalho, mas não trabalham de forma otimizada ou correta. Isso leva a um custo enorme em todo o mundo.
Há médicos que relatam resistência dos pacientes tanto em aceitar que têm depressão quanto em começar a se medicar. O senhor percebe isso?
Ainda há uma grande questão de estigma, mais ou menos 50% das pessoas que têm depressão não recebem tratamento. É um problema enorme relacionado a crenças, atitude frente à doença e ignorância. Temos que educar a população para mostrar que depressão é uma doença crônica que pode ser gerenciada como se gerencia diabetes, pressão alta. Ela não tem cura, mas podemos tratar.
Quando o medicamento é a melhor opção?
Eu tenho um estudo que verifica o impacto da psicoterapia e dos medicamentos. O que faz a escolha ser diferente é a severidade da depressão. Quanto mais severa, maior a necessidade de antidepressivo. Para uma depressão leve ou moderada, psicoterapia e medicamentos funcionam de forma igual, digamos.
Quando se pode dizer que o paciente está funcional, se não curado?
O paciente tem que ser tratado por nove a 12 meses após o primeiro episódio de depressão. Se ele está se saindo muito bem, comendo bem e se exercitando, é possível diminuir a dose do antidepressivo. Se teve dois episódios de depressão, você trata por dois anos. Mas, se teve três, provavelmente vai precisar de tratamento permanente. É preciso avaliar se ele teve episódios recorrentes, comorbidades, tentou suicídio ou teve sintomas psicóticos. Você não quer brincar com isso, e é melhor que se continue com o medicamento o máximo possível.
Fala-se muito em alterações profundas no mercado de trabalho em um futuro próximo. As mudanças podem agravar casos da doença?
Estresse é o gatilho para a expressão de doenças psiquiátricas. Então, quanto mais estressante o ambiente, seja na economia, na família, em todo o ambiente social, vai haver piora da depressão e causar novos episódios no paciente. Você precisa fazer uma boa gestão do estresse. E a “gig economy” ("economia de bicos", movimentada, por exemplo, por motoristas de aplicativos) , em que as pessoas não têm horário fixo para trabalhar, também pode ter efeitos. A gente sabe que tudo o que desregula o metabolismo em termos de atenção e sono tem potencial de causar depressão. Depende da natureza do trabalho e da capacidade de o indivíduo chegar a um equilíbrio. Talvez durma de manhã e trabalhe à noite, mas não encorajo meus pacientes com depressão a fazer trabalho à noite, por exemplo, porque isso impacta a depressão.
Momentos de instabilidade política, como o que o Brasil e outras partes do mundo têm vivido, podem aumentar ou agravar casos de depressão?
Eu não sei se há estudos que analisaram diferentes países em termos de instabilidade política causando a depressão, mas é um bom tópico para se avaliar. Eu não culparia a instabilidade política pelo transtorno de depressão. Depende de quem está experimentando o estresse.
O senhor ou alguém próximo já teve depressão?
Não tenho histórico familiar, mas tenho amigos e colegas que têm depressão, são tratados e podem ser produtivos.