Moacir Pimentel
Sobral Pinto foi corajoso e humanista o bastante para defender um adepto de um regime que executava inocentes às centenas de milhares – quiça milhões! – por entender que ele tinha direito à defesa de um advogado num regime democrático. Foi assim que Heráclito Sobral Pinto, um católico fervoroso, defendeu o comunista Luiz Carlos Prestes, prisioneiro e réu daquilo que foi a ditadura Vargas, naquele bendito tempo não tão politicamente correto, quando ainda se dava o nome correto aos bois, e ditadores não eram aplaudidos como “heróis da democracia”.
No texto de Sobral Pinto postado no blog por Virgílio Tamberlini, as palavras (“Não basta a amizade ou honorários de vulto para que um advogado se sinta justificado diante de sua consciência pelo patrocínio de uma causa”) fizeram-me lembrar de relato do meu pai, sobre uma das maiores tragédias amorosas da história do Brasil, a qual, por sua vez, foi tema de uma das mais famosas cartas já escritas versando sobre “o dever do advogado”.
A história mistura um triângulo amoroso e dois crimes de morte. Os personagens foram Euclides da Cunha, escritor famoso, autor de Os Sertões, sua esposa Anna Emília Ribeiro de Assis, mulher de rara beleza, desposada por ele aos 14 anos (tanto que, segundo relatos, teria levado a boneca predileta para a noite de núpcias, uma experiência , aliás, que a garota abominou) e o cadete Dilermando de Assis, 13 anos mais novo do que Anna, seu amante e assassino de Euclides.
TRAGÉDIA DA PIEDADE
O crime, que a imprensa indignada chamou de “A Tragédia da Piedade”, teve lugar num domingo de inverno, em agosto de 1909, na Zona Norte, no Rio de Janeiro. Euclides da Cunha foi à casa onde sua mulher e o amante viveram durante 4 anos, em segredo, o seu tórrido caso de amor – dizem que Euclides tinha ciência do relacionamento, mas que se recusava a aceitar a separação e ameaçava tomar da mulher os filhos. O escritor sacou de um revólver, afirmando que ali estava para matar ou morrer. Dilermando foi ferido, assim como um seu irmão de nome Dinorah, que ao tentar arrebatar a arma do escritor foi atingido no pescoço, teve comprometida a coluna vertebral e ficou paraplégico. Dilermando, mesmo ferido, acertou Euclides no peito com um disparo mortal.
A notícia da morte de tão enorme monstro sagrado da literatura convulsionou a sociedade carioca e abalou a República. Dilermano e Anna foram massacrados pela mídia e pela opinião pública. A população revoltada ameaçava com linchamento os adúlteros.
Foi então que entrou na história um jovem rábula, um autodidata com notório saber jurídico – na realidade ele só se formaria em Direito muito tempo depois, já aos 45 anos – de nome Evaristo de Moraes, convidado que fora pela família do assassino a assumir a causa e defender Dilermando perante o júri popular.
CONSELHO DE RUY BARBOSA
No entanto, o inexperiente causídico amarelou, não apenas pelo receio de que a ululante aversão da mídia e o cada vez mais enfurecido clamor popular pudessem contaminar a sua imagem, mas por uma questão ética: ele e Dilermando eram adversários políticos. Evaristo era um civilista e defensor das aspirações à Presidência da República do grande Ruy Barbosa, enquanto Dilermando era um militarista, partidário do marechal Hermes da Fonseca.
Indeciso, o jovem jurista resolveu se aconselhar com Rui Barbosa sobre o dilema. A resposta de Ruy Barbosa a Evaristo de Moraes é uma aula de Direito,em uma carta onde o patrono da advocacia brasileira sintetizou aquele que é , na minha modesta opinião, o mais profundo alicerce da advocacia . Segundo o Águia de Haia, nenhum motivo alheio à causa – como a filiação partidária, ou a indignação popular, por exemplo – deveria afastar um advogado do seu ofício. Ruy Barbosa, que costumava recusar sumariamente causas cíveis quando “injustas, imorais e ilícitas”, escreveu a Evaristo de Morais que a defesa penal, ou seja, dos acusados de crimes, deve ser feita, não lhe interessando “quem fossem, do que se ocupassem e os crimes que tivessem cometido”.
DUAS ABSOLVIÇÕES
Não apenas uma, mas por duas vezes Evaristo de Moraes absolveu Dilermando de Assis, que, além de Euclides da Cunha, matou também anos depois, em legítima defesa, o filho do grande escritor, Euclides da Cunha Filho, quando tentou vingar a morte do pai.
Terá sido feita justiça? Era Dilermando de Assis inocente dessas duas mortes ou teriam sido Euclides da Cunha e seu filho covardemente assassinados?
Nunca saberemos. Mas não podemos confundir o advogado com o criminoso que defende e, afinal, Dilermando de Assis foi acusado e defendido, civilizadamente, diante de um júri popular e mais não poderia ter sido feito.
Termino este arrazoado com um parágrafo da lavra de Anna de Assis , em seu diário: “De nós três: Euclides, Dilermando e eu, três criminosos, o mais responsável sou eu”.
http://www.tribunadainternet.com.br/sobral-ruy-barbosa-e-a-morte-de-euclides-da-cunha/