20 de Outubro de 2013 -Juiz de Fora
Por EDUARDO VALENTE
A internet é uma grande praça virtual para união de grupos. Foi assim em junho, quando milhões de pessoas no país iniciaram manifestações nas ruas, após encontros agendados pelas redes socais. Se a ferramenta é usada para mobilizar a sociedade por uma causa, ela também tem sido instrumento para atitudes questionáveis, como acontece com um grupo formado em Juiz de Fora. A novidade, na rede social de troca de mensagens instantâneas WhatsApp, para smartphone, é denunciar a presença de operações policiais nas ruas. Intitulada "Trânsito JF", a iniciativa já reúne 1.100 internautas que, em tempo real, avisam a existência das blitze. A Tribuna teve acesso a uma das 22 salas de conversação criadas, com 50 usuários em cada, e contabilizou 69 denúncias de batidas policiais nos últimos 35 dias. Quando a apuração da reportagem começou, há um mês, o ambiente era formado por oito salas, com 400 usuários.
Mais que enfraquecer a ação policial, a atitude tem se tornado alívio para os condutores que insistem em dirigir sob efeito de álcool, portando armas ou drogas ou sem a carteira e documentação dos veículos em dia. As frases, em geral, são para alertas das operações, como a encontrada na última segunda-feira, dizendo: "Blitz no Barbosa Lage, em frente à praça sentido Zona Norte. Parando tudo, muita atenção neste local hein". Na última quinta-feira, outro alerta para quem teme as batidas policiais: "Atenção blitz começou agora no Santa Cruz Shopping". Além destas postagens, existem algumas que focam na divulgação de assuntos pertinentes, como a existência de acidentes de trânsito que causam retenções pontuais. Tal atitude, porém, foi identificada apenas em seis ocasiões, o que representa pouco mais de 8% do total de mensagens.
De acordo com o comandante do Pelotão de Policiamento de Trânsito (PPTran), tenente José Lourenço Pereira Júnior, a prática no ambiente virtual já é de conhecimento do setor de inteligência da corporação, embora ele admita que o comando ainda estuda o que pode ser feito para coibi-la. Sobre o assunto, ele reforça que a sociedade precisa compreender o papel das operações. "Os usuários desta rede social não estão só comprometendo as fiscalizações, mas sim toda a segurança pública. É numa blitz dessas que podemos identificar o autor de um sequestro-relâmpago, por exemplo. Muitas vezes, encontramos nas batidas pessoas com armas, drogas ou com mandados de prisão. Isso é o que mais incomoda. É uma atitude repugnante." Para diminuir os efeitos das denúncias on-line, o tenente informa que as blitze têm ocorrido em um curto espaço de tempo.
Falta legislação
Para o comunicólogo Dimas Tadeu Lorena Filho, mestre em rede, estética e tecnocultura, as redes sociais caracterizam-se por sua natureza anarquista, sendo comum o uso da informação colaborativa para o ilícito. Segundo ele, este problema parte da ausência de legislação específica para internet. "O que deve ser feito é entender a demanda do cidadão, sem cercear o caráter colaborativo, e fazer com que ele utilize a ferramenta de forma construtiva."
O sociólogo Paulo Fraga, diretor do Centro de Pesquisas Sociais da UFJF, também cita a ausência de leis". "A questão é que não há ilegalidade, mas o cidadão que quer moralidade e ética na política precisa repensar a abrangência da própria ação." De acordo com Fraga, não é possível generalizar, mas as pessoas tendem a se mobilizar só quando o fato acontece próximo a ela. "Nos Estados Unidos, há a organização 'Sobreviventes de homicídios'. São pessoas que perderam familiares em crimes violentos e sofrem com a dor. No Brasil, este tipo de grupo também é comum com relação às vítimas de trânsito. Acho que a conscientização tem sido até maior que há alguns anos", afirma, citando o caso do Rio, onde condutores têm evitado a associação álcool e volante. "Elas usam mais o táxi. O problema é que, aqui, o transporte público precisa atender melhor a população."
Avisos feitos com antecedência
Entre as mensagens observadas nos últimos 30 dias, uma chama atenção por informar, com cinco horas de antecedência, que, no dia 28 de setembro, iria ocorrer uma ação da Lei Seca. Publicada pelo administrador do grupo, a informação (ver quadro) garantia que, a partir das 20h e até as 2h, operações seriam deflagradas. O detalhe é que a mensagem fornecia características da ação, alertando que a equipe seria "composta de uma viatura, duas motos de apoio e uma van".
Questionado sobre o fato, o comandante do Pelotão de Policiamento de Trânsito (PPTran), tenente José Lourenço Pereira Júnior, admitiu que, naquela data, a operação com uso dos etilômetros ocorreu: "Foi na Cidade Alta, a partir das 20h30, com apoio da 99ª Companhia." Segundo tenente Júnior, existe a possibilidade de a informação ter sido vazada, já que as fiscalizações ocorrem a partir de um planejamento prévio, envolvendo não apenas o PPTran, como as companhias de polícia.
O tenente citou como exemplo uma situação presenciada por ele, em Belo Horizonte, no dia 23 de agosto. "Estava participando de um treinamento sobre a expansão das operações Lei Seca e, na reunião de planejamento da ação do dia, no batalhão da PM, com Polícia Civil e BHTrans, um policial nos mostrou uma mensagem de uma pessoa de fora informando que já sabia da operação."
Com relação ao grupo de Juiz de Fora, a publicação do último dia 28, no entanto, não foi a única. Uma semana antes, em 20 de setembro, outro usuário publicou: "Informação de dentro da PM de que vão ter várias blitze hoje à noite." Para evitar esta atitude, o tenente esclarece que os locais das abordagens são preservados até o último momento, sendo que apenas ele e os comandantes das companhias envolvidas são informados previamente.
Código de Trânsito não é aplicado
Para a doutora em estudos sobre violência no trânsito Andreia Santos, do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas, o uso da internet para divulgação de blitze é consequência da falta de exploração do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), instituído em 1997. Ela explica que o texto, na época, previa fortalecimento do caráter educativo, em detrimento ao punitivo. Havia a preocupação em formar e sensibilizar o condutor. Para isso, pretendia-se, na época, obrigar emissoras de rádio e TV a inserir três anúncios diários sobre cuidados no trânsito. "A imprensa escrita também deveria manter peças publicitárias sobre implicações da questão de trânsito. Havia preocupação do Governo em educar o condutor. Atualmente, entende-se que apenas a punição basta."
No fim de setembro, a reportagem flagrou uma publicação no Facebook do funcionário de uma casa noturna, em Juiz de Fora, avisando que os frequentadores já podiam ir para a boate porque a blitz havia acabado. Segundo Andreia, atitudes como essa mostram a necessidade de fortalecer as campanhas, mostrando que o risco não é ser surpreendido pela fiscalização, mas dirigir sob efeito do álcool.
A socióloga avalia o quadro como "inversão de valores do brasileiro". "Nosso Estado é extremamente hierárquico. Manda quem pode, e obedece quem tem juízo. O cidadão precisa entender que a consequência de associar álcool ao volante vai muito além da multa. Até mesmo porque cidadãos com boa situação financeira não se sentem punidos ao pagar cerca de R$ 1.900 pela infração."
Como exemplo, Andreia cita um programa do Canadá, onde o condutor flagrado sob efeito de álcool precisa prestar serviços em uma ONG. "Ele fica as madrugadas dos fins de semana na organização, aguardando o telefone tocar. Quando chamado, deve buscar um condutor embriagado em uma festa e levá-lo para casa."
Grupo começou entre amigos
A Tribuna entrou em contato com o administrador das salas do "Trânsito JF" no WhatsApp. Ele, um empresário de 34 anos, diz que não esperava o crescimento tão grande do serviço em um curto período, mas afirma não temer represálias, baseando-se em recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que teria garantido o livre acesso à informação em um caso semelhante. No entendimento do professor de direito penal e defensor público Luiz Antonio Barroso, não há previsão, no Código Penal, que trate deste tipo de conduta, razão pela qual não existe crime. "Há até uma aplicação no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) que prevê multa no caso de o motorista que passou por uma blitz piscar o farol para outros que seguem no sentido contrário. Mas esta regra, no meu entendimento, não se aplica neste caso."
Segundo o empresário, o grupo existe há cerca de dois meses, e começou com a ideia de amigos compartilharem mensagens de trânsito entre si. "A primeira sala, que não é minha, foi criada assim, com cerca de 30 pessoas. Depois, um amigo foi adicionando outro, até chegar aos atuais 1.100. Além disso, há outros usuários que criam novas salas (cada uma suporta 50 internautas). Parei de adicionar novos membros porque não dava mais conta de administrar tudo. Tenho minhas atribuições profissionais e não posso ficar por conta do WhatsApp."
O empresário, que afirma ter outros aplicativos de smartphone com as mesmas características, garante que não recebe informações privilegiadas de policiais, mas alguns usuários às têm. "Eu apenas copio o texto para os demais membros." Também afirmou que o grupo não é apenas para destacar as blitze, mas para discutir situações relacionadas ao trânsito, de um modo geral. "Fico sabendo o tempo todo de acidentes, com retenções. Quando acho pertinente, divulgo aos demais."
Perguntado sobre a possibilidade de o serviço estar informando da presença policial a criminosos ou pessoas alcoolizadas, ele afirma não pensar no assunto, dizendo que apenas comunica o fato, para cada um utilizar como achar melhor. "Comigo, por exemplo, já aconteceu de esquecer a carteira de habilitação em casa. Neste caso, vou evitar passar em uma blitz. Não imagino que estamos adicionando bandidos. Eu, particularmente, não sou contra a Lei Seca, mas gosto de beber cerveja e sei dos meus limites para que meus reflexos não sejam prejudicados."