Por Rosângela Martins – Advogada, Feminista e Membro do Conselho Geral da Uneafro-Brasil
#AgoraÉQueSãoElas
Desde que recebi o convite para escrever sobre este momento estarrecedor na vida das mulheres, salta à mente a ideia de que, no Brasil, desde a invasão, mulheres africanas e sua descendência foram as principais vítimas da violência, seja a partir do trabalho compulsório, seja a partir da violência sexual, por quase 400 anos de escravidão e se percebe, nitidamente, permanências ainda hoje, desse período.
Mas é possível observar a violência continuada contra as mulheres também como herança do período medieval, no qual a inquisição as queimava, por considerá-las como uma “classe perigosa” a ser reprimida, que os processos de criminalização e de vitimização da mulher tem direta relação com o poder punitivo e com o poder de gênero.
Mas é possível observar a violência continuada contra as mulheres também como herança do período medieval, no qual a inquisição as queimava, por considerá-las como uma “classe perigosa” a ser reprimida, que os processos de criminalização e de vitimização da mulher tem direta relação com o poder punitivo e com o poder de gênero.
Criminologia feminista versus poder punitivo
O presente artigo não tem a pretensão de traçar uma linha histórica, mas ressalta a importância de fatos que legitimaram a perseguição às mulheres. Tomo como exemplo o “Malleus Maleficarum” ou o “Martelo das Feiticeiras”, de Heinrich Kramer e James Sprenger, de 1487, texto que relaciona a feitiçaria à condição feminina, e demonstra como a inquisição foi uma manifestação do poder punitivo, um verdadeiro manual de inquisidores.
O caráter “perigoso”, tanto quanto o doméstico bem delimitado reduzia fortemente a participação das mulheres, ou seja, sua expressão pública. Embora as mulheres não tenham sido afastadas da esfera pública no período medieval (isso já acontecia antes), na baixa Idade média é que se constrói um discurso de exclusão, limitação da participação feminina e também de sua perseguição e encarceramento. Nesse sentido, a caça às bruxas é uma prática misógina persecutória.
Mesmo quando damos um salto para a Declaração de 1789, na França, a adesão da mulher ao estatuto igualitário, se dá como um papel secundário em relação ao homem, como filha, esposa e mãe. E, se durante a Revolução Francesa, as mulheres tomam as ruas como insurgentes, as mudanças não foram significativas.
Tanto é que a autora da Declaração dos Direitos da Mulher Cidadã, a feminista Olympe de Gouges, foi executada por seus companheiros revolucionários franceses.
O que dizer do Brasil colônia (Séc. XVI) e as sessões de torturas em relação às escravizadas que estavam submetidas a todo o tipo de serviço, sofriam a violência sexual, serviam de amas-de- leite dos bebês brancos, mas não podiam estar de forma digna com seus próprios filhos? E como forma de resistência ao regime escravocrata, abortavam, para que suas crianças não estivessem destinadas à mesma peleja. Isso não é perseguição? O desrespeito que ocorre até hoje em relação às religiões de matrizes africanas – também é uma caça às bruxas, às nossas ancestrais.
Essa parte da História parece bastante perversa em relação às mulheres, mas não é diferente quando o assunto é sistema de justiça criminal, o qual não alcança a proteção das mulheres contra a violência, faz pior: torna-se um sistema de violência institucional, que exerce seu poder sobre as vítimas.
O poder punitivo arbitrário é muito mais rigoroso se pautado à cor da pele das mulheres. As sequelas do regime escravista ainda persistem, bem como os seus mitos infelizes. Um deles, de que a “mulher negra seria mais resistente à dor”. E diante desta falácia é que compõe dados estatísticos de que 60% no índice de morte materna é de mulheres negras.
A indignação que se transforma em resistência e luta de hoje se deve à dor das sequelas da escravidão, próprias das mulheres negras, uma vez que a nossa sociedade ainda se beneficia dessa atrocidade, pautada no regime escravocrata. E como não se lembrar de uma mulher negra, no Rio de Janeiro, mãe, doméstica que foi morta pela polícia e arrastada por 350 metros. Sim, Cláudia Silva Ferreira. Vítima desse “justiçamento” bárbaro, medonho, criminoso.
O que me levou a essa viagem, também, foi um fato ocorrido no domingo, dia 01 de novembro de 2015, na Feira do Livro Feminista e Autônoma (FLIFEA) de Porto Alegre – segue um trecho da nota de repúdio das feministas agredidas:
“Na noite de domingo, estava acontecendo um ensaio artístico, com a presença de em torno de 20 mulheres, e uma viatura chegou com dois policiais que vieram supostamente devido ao barulho. Eles filmaram e intimidaram as mulheres presentes que estavam falando com eles, o que gerou reações de proteção entre as mulheres, como se organizar para ir embora e filmar a situação. Em seguida chegaram outras viaturas com mais policiais que foram extremamente agressivos e marcadamente racistas desde o início e tentaram deter uma de nós de maneira violenta, o que desencadeou uma série de agressões físicas por parte da polícia das quais nove mulheres ficaram feridas, sendo que quatro gravemente e precisaram de atendimento médico”.
O que justifica tal ação?
Existe um perverso sistema penal subterrâneo, ou seja, ao mesmo tempo em que as penas públicas estão por aí, existem as privadas, os castigos, os critérios de condenação jurídicos e extrajurídicos. Este sistema decreta quem é bom, e quem é mal – partindo da visão de quem o aplica.
É a criminalização das mulheres por todos os lados. E isso assusta!
Enquanto se busca a mudança de mentalidade para a erradicação da violência de gênero contra as mulheres e crianças/meninas, a luta pela igualdade de gênero, respeito, garantia dos direitos fundamentais (resultado de disputas políticas, sociais, econômicas, etc), surge em contrapartida, uma onda fundamentalista e extremamente conservadora, que propaga o genocídio das mulheres direta e indiretamente. São os inquisidores da atualidade!
Ao invés de termos um direito penal mínimo, que deveria proteger as mulheres, estamos diante de um poder punitivo que criminaliza e vitimiza, seja por conta da autodeterminação no que concerne o aborto, seus direitos sexuais e reprodutivos ou a violência de gênero.
O poder punitivo sempre esteve presente na vida das mulheres, e é seleto com base em estereótipos e conforme a vulnerabilidade. Aliás, estudiosas sobre criminologia afirmam que a seleção criminalizante é o produto último de todas as discriminações.
Não é a toa que hoje nos deparamos com projetos de Lei como o de nº 5069/13, do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que pode ser considerado um grande retrocesso na conquista de direitos das mulheres, e é a maneira mais cruel para se controlar seus corpos.
O rol exemplificativo das tentativas de cerceamento dos direitos fundamentais das mulheres é extenso, por isso a importância de uma análise pela perspectiva da criminologia feminista.
Em suma, a ideia é trazer à baila a discussão sobre limites à lei penal, por uma perspectiva feminista, frente ao poder punitivo legitimado pelo Estado e que atua de forma exacerbada até os dias de hoje.
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Este Blog não é um espaço tradicional de “grande mídia”, tampouco este editor é alguém “com voz de alto alcance público”, ainda assim fiz questão de aderir à belíssima iniciativa da campanha #AgoraÉQueSãoElas, afinal, se a vida está ficando cada vez mais difícil para as mulheres devido os riscos de retrocessos e retirada de direitos adquiridos, é sempre bom lembrar que o sobrepeso recairá nas costas das mulheres negras, pra variar. Pois essa semana, e sempre, esse espaço é delas. Das pretas.
Douglas Belchior
http://negrobelchior.cartacapital.com.br/cunhas-felicianos-e-bolsonaros-sao-inquisidores-da-atualidade/
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