27/06/2014 às 6:25
O príncipe e o servil plebeu das ideias; desnecessário explicar quem é quem
A nobreza europeia gosta de paisagens e países exóticos, uma herança, vá lá, cultural das duas grandes ondas colonialistas, a do século 16, que se fixou nas Américas e nas costas africanas, e a do século 19, que buscou o interior da África, com as potências fazendo a partilha formal das terras ignotas. O que está fora da Europa é o “outro”. Antes, imaginava-se que aqueles mundos estranhos pudessem ser civilizados; hoje em dia, com o triunfo do pensamento politicamente conveniente, que classificam, impropriamente, de “politicamente correto”, há um troço que eu chamaria de “tolerância antropológica”. Os europeus se divertem com os hábitos dos exóticos. Não pensem que isso é só virtude. O pai de Harry, por exemplo, o príncipe Charles, é um ecologista convicto. Está entre aqueles que acham que o nosso papel é conservar macacos e florestas, deixando a tecnologia para os europeus…
Mas não vou me perder no atalho. Não sou do tipo que se envergonha de ser brasileiro. Nem me orgulho. Indivíduos são indivíduos em qualquer parte. Há coisas no Brasil que adoro. Há outras que abomino. Mas também as haveria de um lado ou de outro se meu país fosse a Suécia. A cada vez, no entanto, que vejo autoridades brasileiras se orgulhando da nossa miséria, da nossa degradação, da nossa desgraça, sinto revirar o estômago de puro constrangimento. E foi precisamente essa a sensação que tive ao ler as várias reportagens sobre a visita de Harry à Cracolândia, em São Paulo, devidamente escoltado pelo prefeito Fernando Haddad, com seu ar de deslumbramento servil, depois de ter esperado pelo príncipe por longos 45 minutos.
O rapaz foi levado para conhecer o programa “Braços Abertos”. Ninguém poderia ter dado melhor definição do programa do que um de seus formuladores, o secretário de Segurança Urbana, Roberto Porto, um dos queridinhos de certa imprensa descolada. Ele resumiu assim o espírito da visita do príncipe à Cracolândia: “Pelo contato que tive, que foi limitado, ele gostou do que viu. Ele quis saber a lógica de se ter um local monitorado, com as pessoas continuando a venda de crack”. Ele é promotor. Deve conhecer o peso das palavras. A venda de uma substância ilegal se chama “tráfico”; se tal substância é droga, é “narcotráfico”. Dr. Porto diz que o nobre inglês gostou de saber que há um pedaço no Brasil em que não se respeitam a Constituição e o Código Penal.
Sempre afirmei neste blog que o programa “Braços Abertos” era, na prática, uma ação coordenada de incentivo ao consumo de drogas. Talvez Harry tenha ficado mais espantado ainda ao saber que a Prefeitura garante o fluxo de dinheiro a uns 400 e poucos viciados, aos quais oferece moradia gratuita — em nome da dignidade, é claro! Quando foi informado, se é que foi, de que os dependentes não precisam se submeter a nenhuma forma de tratamento, deve ter pensado: “Como são estranhos esses brasileiros! Na Inglaterra, nós recuamos até das liberalidades que haviam sido criadas para o consumo de maconha”. Ao olhar a paisagem que o cercava, deve ter dado graças aos céus pelo vigilante trabalho dos conservadores de seu país.
Sim, senhores! Antes da visita do príncipe, a Cracolândia passou por uma rápida maquiagem, com lavagem das ruas, coleta de lixo, retirada do entulho que os zumbis vão largando por ali. Assim como deveríamos ter Copa o ano inteiro para que as autoridades fossem um tantinho menos incompetentes, a realeza europeia poderia nos visitar amiúde. As ruas seriam mais limpas, eu acho. Nem que fosse apenas para inglês ver.
O príncipe, o prefeito, seus auxiliares e os outros deslumbrados se foram — antes da hora prevista porque teve início um tumulto. Meia hora depois, os dependentes retornavam para o tal “fluxo”, aquele perambular contínuo marcado por consumo, tráfico, escambo, degradação pessoal, desordem pública… Um dos viciados sentenciou, informa o Estadão, pouco antes de ameaçar a reportagem com uma pedrada: “Venha quem vier, mas a Cracolândia sempre vai ser nossa”.
Eis o programa de combate ao crack que Haddad prometeu implementar na campanha eleitoral de 2012. Não sei quantos anos vai levar para a cidade se recuperar das consequências trágicas da gestão deste senhor. Para encerrar: em qualquer democracia do mundo, o Ministério Público — ou seu homólogo — levaria o prefeito Fernando Haddad e seu secretário de Segurança Urbana aos tribunais. Basta ler a Constituição. Basta ler o Código Penal. Basta ler a lei antidrogas. Quem responde por essa tragédia moral? Em primeiro lugar, os que a promovem. Em segundo lugar, os que, com o seu voto, puseram Haddad onde ele está.
Texto publicado originalmente às 2h52
Por Reinaldo Azevedo
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/
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