domingo, 5 de maio de 2013

O médico que tinha “para consumo” uma verdadeira floresta de maconha no apartamento. Ou: Fume, cheire e dirija! Mas nada de tomar uma taça de vinho!

05/05/2013  às 7:21

Vejam esta foto, com essa exuberância verde, de autoria de Luiz Roberto Lima (Futura Press). Volto em seguida.

 
É… Eu tenho um lado meio chato, sabem?, embora seja um cara bacana, claro… Não desisto fácil de uma ideia. Esse troço todo, depositado no porta-malas do carro, é maconha. Foi encontrada no apartamento de um médico na rua São Clemente, em Botafogo, Zona Sul do Rio. Plantar maconha em casa, especializar-se na cultura hidropônica da dita-cuja, investir nessa variedade de agricultura familiar, enfim,  tornou-se uma verdadeira febre entre alguns descolados… “Ah, pelo menos não precisam recorrer ao tráfico…” Logo vai ter gente reivindicando a montagem de seu próprio laboratório de refino de coca…
Veja bem, leitor amigo, do Rio ou de qualquer lugar. Caso você tenha tomado uma taça de vinho e seja parado numa blitz da tolerância zero e se negue a soprar o bafômetro, vai para a delegacia. Pior: há o risco de o seu carão sair no jornal. Alguém terá de ser chamado para conduzir o veículo. Metem-lhe uma multa na testa. Se alguém perguntar aos participantes do seminário em favor da descriminação das drogas que ocorre em Brasília se são contrários ou favoráveis à Lei Seca, não duvido: a esmagadora maioria se dirá favorável.
Que espetáculo!
O sujeito que tomou uma taça de vinho não pode conduzir um veículo, certo? E o que fumou maconha? E o que cheirou cocaína? E o que tomou ecstasy? E o que fumou crack? Nesses casos, qual é o teste? Sim, se e quando houver a descriminação do consumo de drogas, é evidente que aumentará exponencialmente o número de motoristas que conduzirão seus veículos sob o efeito de drogas. Já hoje, com alguma frequência, podem-se ver pessoas fumando maconha ao volante. Mas volto ao médico.
Sim, leitor, se você parar numa blitz da Lei Seca, mesmo o álcool não sendo uma substância proibida, seu nome pode ir parar nos jornais e na redes sociais. Já com o doutor, em cuja casa havia aquela quantidade de maconha — haja consumo, não é mesmo??? —, não aconteceu nada. Nada mesmo! O nome foi mantido em sigilo, e ele foi liberado. Responderá, segundo se informou, por posse de drogas para uso próprio. No máximo, será obrigado a prestar serviço comunitário por algum tempo.
Como? “Posse para uso próprio”? O que diz a Lei 11.343?
Art. 2º Ficam proibidas, em todo o território nacional, as drogas, bem como o plantio, a cultura, a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou regulamentar, bem como o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso.
Muito bem o Artigo 28 dessa lei já é bastante manso com quem cultiva droga só para uso pessoal, e é nele que o delegado enquadrou o tal médico sem nome. Reproduzo:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
Olhem de novo a foto. Aquilo é para consumo pessoal? Eram sete pés gigantescos de maconha. O tal doutor se encarregava sozinho de toda aquela vasta produção? E acreditar, então, que, quando ele não estava fumando maconha, estava salvando vidas, não é mesmo? Sei lá quem é ele. Mas me parece que o que vai ali o enquadra é no Artigo 33 da Lei, a saber:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II – semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
Legalização branca
A verdade é que já está em curso uma espécie de descriminação branca das drogas, especialmente quando diz respeito — neste caso, é literal! — à turma dos andares de cima. Aí insistirá alguém: “Ah, mas ele não estava fazendo mal a ninguém e ainda estava evitando a relação com o tráfico”. Ainda que realmente conseguisse fumar sozinho tudo aquilo, o que duvido, pergunto: “Será que não fazia mesmo mal a ninguém?”. Os pacientes que ele atende têm um bom padrão de tratamento? Têm, ao menos, noção da opção feita pelo profissional no qual confiam?
“Moralismo”? Não! Trata-se de reconhecer que uma pessoa que tem árvores de maconha em um apartamento já ultrapassou a fronteira do “uso recreativo” faz tempo e que é pouco provável que não haja um comprometimento cognitivo, até mesmo pela potência destrutiva da droga cultivada desse modo, que é muito maior. Muitos dos participantes do encontro de Brasília diriam, claro, que é droga de “melhor qualidade”…
E que se note: o médico, com todas as implicações éticas da profissão, é um notório desrespeitador da lei, que é, afinal, expressão do contrato social. Como diz um amigo psicanalista, “a estrutura clínica que melhor define o modo de pensar destas pessoas é a PERVERSÃO: ‘Eu conheço a Lei, mas para mim ela não se aplica’”.
Para encerrar
Volto ao seminário de Brasília. O encontro que termina hoje e todos os que se fazem por aí (logo haverá um em São Paulo) ou são meramente reativos (contra o endurecimento da lei) ou são, sim, propositivos, mas sempre no terreno do proselitismo, nunca das alternativas de tratamento ou da resposta necessária ao sofrimento dos pacientes.
Como chegamos a esse ponto? Ah, isso tem história. Na madrugada de segunda, dou conta dessa e de outras loucuras em curso.
Por Reinaldo Azevedo

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