Charge do Genildo (arquivo Google)
Moacir Pimentel
Para começo de conversa, não há qualquer solução além da Constituição. E ouso mencionar aqui alguns versos do grego Konstantinos Kaváfis, em seu famoso poema “À Espera dos Bárbaros”. Retrata um povo reunido em suspense apático, à espera que os bárbaros dêem as caras “à porta magna da cidade”. Até que na estrofe final a atmosfera muda… “Por que subitamente esta inquietude?/ Porque é já noite, os bárbaros não vêm/ e gente recém-chegada das fronteiras/ diz que não há mais bárbaros./ Sem bárbaros o que será de nós?/ Ah! eles eram uma solução”.
Ora, encaremos uma triste realidade. Nas nossas praias os bárbaros já chegaram e as arrasaram. O bárbaro Eduardo Cunha é apenas um dos argumentos do discurso petista para não largar o osso. Para os petistas, a folha corrida do deputado serve de cortina de fumaça para os próprios crimes. Muito menos mal nos fará o presidente da Câmara, durante os 90 dias de seu suposto reinado, do aquele os malfeitos de quem nos barbariza há quase 14 anos. Al Capone e suas criaturas criminosas chegaram à Presidência da República e tomaram de assalto a coisa pública faz tempo. A quem pensam que enganam?
DEFESA DA CONSTITUIÇÃO
É curioso como os petistas usam e abusam na sua prosa de defesa de uma Constituição que se recusaram a assinar e da ética que decidiram estuprar.Não discutem mérito, mas rito. Não encaram o conteúdo das denúncias, mas a forma.
Enquanto uma delação aponta para um monte de propinas da ordem de R$ 150 milhões de reais para o seu partido e os aliados, a presidente Dilma Rousseff, ao invés de pedir ao seu ministro da Justiça para cuidar da investigação, ordena que o pelego restrinja o vazamento das denúncias.
Portanto, é neste contexto imoral e ilegal que estamos lutando uma missão que beira à utopia – transformar a ética em prática.
ANATOMIA DA ÉTICA
Uma reflexão imperdível sobre a ética – o melhor comportamento moral do indivíduo – é feita de uma forma muito original no livro “Anatomia de um Instante”, de Javier Cercas. O livro narra o golpe de 23 de Fevereiro de 1981 na Espanha. O palco é o Parlamento espanhol. Durante a votação para legitimar o candidato a primeiro-ministro Calvo Sotelo, foi tomado e varrido de balas por militares insurretos. Os deputados foram, na ocasião, orientados a se proteger atrás das cadeiras , mas três deles permaneceram sentados na bancada, imóveis e desafiadores, enquanto as balas ziguezagueavam por todos os lados. Eram eles o primeiro- ministro em exercício, Adolfo Suarez, o vice-primeiro-ministro e ministro da Defesa, general Gutierrez Mellado, e o secretário-geral do Partido Comunista. Santiago Carrillo.
O primeiro, Adolfo Suarez, num cenário de descontentamento que se alastrava pelas casernas, era o legítimo filhote da ditadura franquista, escolhido a dedo pelos poderosos de Espanha para protagonizar uma transição “democrática” feita nas coxas. Porém, Suarez decidira não se limitar a mudar as coisas apenas o suficiente para que continuassem na mesma. Pretendia verdadeiramente transformar a ditadura em democracia e, para tanto, costurara a legalização do Partido Comunista Espanhol, representado por Carrillo, que, por sua vez, jurara lealdade à monarquia. Juntos, os três formariam um governo de transição.
DE PEITO ABERTO
Na Assembleia, a Casa do Povo, na anatomia daquele instante, aqueles homens enfrentaram de peito aberto as balas dos militares liderados pelo tenente-coronel Tejero. Um franquista de alma e coração, ele não aceitava que seu projeto de transformar Espanha num quartel se convertesse num mero governo de coligação interpartidária.
Só que… como Suarez, Mellado e Carrillo não se curvaram, Tejero teria que matá-los para que o golpe avançasse. Mas o tenente-coronel recuou.
Segundo o entendimento do escritor Javier Cercas, Os três líderes foram traidores. Pois Carrillo traíra o comunismo que defendera desde a juventude, Mellado fora infiel ao Exército, para o qual lutara, e Adolfo Suarez se convertera em um traidor total, porque sem sua traição as demais não poderiam ter acontecido. Afinal, Suarez era o herdeiro do antigo regime e ali, aos olhos do mundo, renegara a herança do generalíssimo Francisco Franco, a qual jurara defender e perpetuar.
AVENIDA ILUMINADA
As traições de Suarez, Carrillo e Mellado abriram uma avenida iluminada que permitiu a transição e depois o advento da democracia na Espanha. Nenhum dos três traidores, é claro, merece ser assim chamado.
Javier Cercas explica brilhantemente essa contradição: “Traíram os seus para não se traírem a si mesmos; traíram o passado para não atraiçoarem o presente”.
O escritor parece acreditar que a todo homem é reservado, nesta vida, apenas um instante, no qual lhe é oferecida a chance de escolher entre uma vida sem sentido ou fazer história e dizer ao mundo a que veio. Em um segundo de tempo um homem pode se justificar no seu tempo ou se danar para sempre.
Nesta encruzilhada é preciso, muitas vezes, que o homem traia tudo aquilo no qual acreditou verdadeiro até então, para não trair a si mesmo e seguir em frente mudado, é verdade, mas sempre o mesmo e inteiro.
QUESTÃO FILOSÓFICA
O livro nos faz uma questão filosófica: se temos uma ética da lealdade, não precisaríamos ter também uma ética da traição? Quando os peemedebistas, depois da eleição de Eduardo Cunha para presidente da Câmara, passaram a enfrentar o governo com uma altaneira independência legislativa, cheguei a acreditar que – talvez? – um novo PMDB estaria deixando de lado o fisiologismo de uma vida. A exemplo dos traidores da ditadura que permitiram a construção da democracia espanhola, poderiam vir a ser os agentes de uma retirada petista.
Ledo engano. O que se viu, sob comando de Renan Calheiros e Eduardo Cunha, ambos já denunciados por corrupção, e sob a coordenação política de Michel Temer, foi o partidão continuar fingindo que só era comissário de bordo, abocanhando ministérios e permitindo – pela governabilidade! – que os aliados petistas, num voo suicida, nos conduzissem ao caos moral, econômico, político e social.
DISCURSOS HIPÓCRITAS
Ouvindo aqueles discursos hipócritas, monocórdios, vazios, amestrados, divorciados da realidade, feitos na Comissão do Impeachment pelos bárbaros e pelos amigados com o poder, sinto uma imensa vergonha.
Falam da barbárie que virá caso a “direitona” suba a rampa em alternância de poder. Só que a “esquerdona”, que ali repete a cartilha de uma organização criminosa, não é mais aquela esquerda universalista, plural e libertária que conheci em minha juventude. Enquanto a direita saiu do armário – e a democracia agradece! –, a esquerda emburreceu, envelheceu, partidarizou-se, patrimonializou-se, deslumbrou-se, lambuzou-se, desviou-se e se deixou corromper.
Tudo o que eu gostaria de presenciar agora nessa cloaca, por um segundo que fosse, era uma boa e legítima traição, motivada por algo que parece estar em extinção: caráter. Uma palavra apenas, só uma, me bastaria, mas que soasse ética, verdadeira, equilibrada e que fosse pronunciada por amor não à uma causa, mas à Pátria.
http://www.tribunadainternet.com.br/para-servir-a-patria-as-vezes-e-necessario-trair-as-causas/