Por Tatiana Lagôa e Rayllan Oliveira Publicado em 20 de junho de 2023 | 03h00 - Atualizado em 20 de junho de 2023 | 09h04
Pessoas esperam atendimento na Upa do Odilon Behrens — Foto: João Godinho
Do lado de fora das unidades públicas de saúde mineiras, filas e insatisfação de quem busca socorro. Do lado de dentro, uma verdadeira batalha pela vida, com um exército de profissionais exaustos e numericamente desfalcado. Em todo o Estado, há 62,2 mil médicos que se dividem para atender uma população estimada em 21,4 milhões de pessoas. Em um cálculo direto, isso é o equivalente a quase três profissionais (2,91) para atender cada grupo de mil habitantes.
A conta, no entanto, fica mais difícil de ser fechada quando o assunto são especialidades. Só para dar um exemplo, 424 oncologistas clínicos são os responsáveis pelo tratamento de todos os mineiros na luta contra o câncer em Minas Gerais. Se eles fossem divididos por cidades, pelo menos metade dos 853 municípios mineiros não teria oferta de atendimento.
Os dados compõem a Demografia Médica do Brasil 2023, divulgada pela Associação Médica Brasileira (AMB), resultado de uma parceria com pesquisadores do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). A baixa disponibilidade de mão de obra especializada comprovada pelo levantamento, na prática, tem inviabilizado atendimentos, inclusive os de emergência, e levado até a mortes em todo o Estado.
Essas dificuldades, provenientes de um cenário muito mais complexo do que dá para ver nas portas das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), postos de saúde e hospitais, são o tema central da série “Do ‘apagão’ de médicos ao caos na saúde”, que O TEMPO começa a publicar nesta terça-feira (20).
Só para citar algumas especialidades com baixo quantitativo no Estado, Minas Gerais tem 113 especialistas em radioterapia, 67 em medicina física e reabilitação, 192 focados em alergia e imunologia, 97 em cirurgia de cabeça e pescoço, conforme os dados da AMB. Esses especialistas não necessariamente atuam no SUS.
“Vivemos uma situação de caos na saúde pública em todo o país, e é um cenário que extrapola a capacidade resolutiva dos municípios. Sabemos que tem pediatras se formando, mas, quando precisamos do atendimento no SUS, não há a quantidade necessária. Quando uma pessoa busca atendimento na atenção primária, que são os postos de saúde, e há indícios de que ela possa estar com câncer, ela precisa de encaminhamento para realização de exames e consultas especializadas. Mas, como faltam especialistas, mesmo com o pedido do médico local, há uma demora enorme e um consequente agravamento da doença”, relata a presidente do Conselho de Saúde do Hospital Infantil João Paulo II, Denise Martins Ferreira. Ela acompanha reuniões de vários Conselhos Municipais de Saúde e fala com a experiência de anos de atuação na saúde, enquanto psicóloga.
Um caos que colocou em risco, por exemplo, a independência de Hortência Maria de Freitas, de 72 anos, em dezembro do ano passado, e que quase tirou a vida de um bebê de 1 mês que esperava por atendimento especializado em março deste ano. Nos dois casos, noticiados em O TEMPO, as vagas surgiram a tempo de impedir o pior. Hortência não perdeu as duas pernas por falta de uma cirurgia vascular, e o bebê não morreu sem vaga em hospital especializado com profissionais preparados para tratar bronquiolite. As duas situações lembradas são parte de uma questão: a necessidade de mão de obra e de vagas especializadas para tratar determinadas doenças. “Ao contrário do que as pessoas pensam, não é só transferir o paciente. Tem que ter vaga, em um local com equipamentos necessários e médicos disponíveis”, explica o professor adjunto de fisioterapia da Una que atuou por dez anos em saúde pública, como coordenador de Núcleos de Apoio à Saúde da Família, Thalisson Henrique Martins Silva.
Em Divinópolis, na região Centro-Oeste de Minas Gerais, a falta de médicos já levou ao fechamento do atendimento pediátrico no hospital público local e superlota a UPA, onde 48 pacientes esperam para serem transferidos. Parte deles, em situação considerada grave, está no local há cerca de 20 dias. “Não é só uma canetada. Existe uma regulação, de competência do Estado, para que a transferência ocorra. Há uma hierarquia; conforme a gravidade do paciente, ele é encaminhado para um hospital. Mas é preciso ter leito disponível na rede e especialistas para receber o paciente”, conta o secretário municipal de Saúde da cidade, Alan Rodrigo da Silva, que também é primeiro secretário do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Minas Gerais (Cosems).
Um processo seletivo está aberto há dois anos na cidade em busca de médicos de diversas áreas. “Um médico pode cobrar R$ 500 em consultas particulares. Se ele atende dez crianças, recebe R$ 5.000 por dia, ou R$ 25 mil por semana. Qual município consegue pagar isso?”, diz o secretário.
Em São João del-Rei, no Campo das Vertentes, o cenário não é diferente. “É muito difícil reter a mão de obra. Às vezes o médico fecha conosco em uma semana e na próxima recebe proposta de outro município. Como as demandas não param, a gente precisa ficar equilibrando com a quantidade de médicos disponíveis e correr atrás de transferências para cidades vizinhas. Mas está difícil em todo lugar”, diz o secretário de Saúde da cidade, Renê Marcos.
Belo Horizonte sofre com déficit de 10% dos médicos
Belo Horizonte é considerada cidade de referência em saúde para 101 cidades em diversas especialidades e 667 municípios para os atendimentos da chamada “média complexidade”, ou seja, para serviços especializados em algumas áreas, como pediatria, cardiologia, entre outras. Uma responsabilidade que faz com que os hospitais da capital tenham uma demanda de várias partes de Minas Gerais e sofram com os reflexos de falta de especialistas para além de seu território.
Atualmente, 35% das internações de urgência que ocorrem na capital são de pessoas não residentes em Belo Horizonte. Nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) da cidade, esse percentual é de 30%. Muitos desses pacientes atendidos saíram de cidades que sofrem com a falta de médicos. “O serviço de urgência tem essa característica de acolhimento na urgência. Em um segundo momento, a pessoa pode ser referenciada para os municípios de urgência”, explica a subsecretária de Atenção à Saúde de BH, Taciana Malheiros.
Ao mesmo tempo em que lida com a demanda remanescente do entorno, BH enfrenta a dificuldade de manter o corpo médico completo. Atualmente, o déficit de profissionais é de 10% na cidade. “Temos tentado fortalecer nossos programas de residência para atrair profissionais e fixá-los na rede, o que é um desafio nacional”, diz Taciana.
Quadro da Fhemig enfrenta um déficit de 15% dos profissionais
Minas Gerais tem 337 anestesiologistas para dar suporte a todas as cirurgias e procedimentos mais invasivos que demandarem o serviço no Estado. A escassez do profissional tem causado um cenário de impedimento de realização de procedimentos, além de dor de cabeça para gestores de saúde.
Recentemente, a Fundação Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig) teve que cancelar procedimentos menos graves e não urgentes em função da falta de anestesiologistas. A Maternidade Odete Valadares e o Hospital Alberto Cavalcante, ambos do grupo, tiveram os procedimentos cirúrgicos eletivos reduzidos pela metade em função da dificuldade de fechar a escala dos profissionais. No João XXIII, os casos emergenciais foram mantidos, mas houve um pequeno impacto nas cirurgias programadas, ou seja, aquelas feitas já nos pacientes fora de risco. Situação que, segundo a diretora assistencial da Fhemig, Lucineia Carvalhais, acaba de ser resolvida provisoriamente.
“Nos últimos sete meses, estamos buscando soluções temporárias para prover as escalas. Lançamos editais de credenciamento de pessoa física e jurídica para contratação de médico avulso, porque aí conseguimos remunerar melhor e suprir as escalas de plantões e de profissionais em falta”, explica. Agora, a rede vai fazer um concurso público, com 1.800 vagas para diversas áreas, inclusive a médica, para recompor o quadro.
Segundo Lucineia, a falta não é apenas de anestesiologistas. Atualmente, o quadro de médicos da rede tem um déficit de 10% a 15%. “Isso é uma média, mas varia muito entre as especialidades. Neurocirurgião, por exemplo, tem a escala mais apertada. Na cirurgia pediátrica, a escassez chega aos 20%. É uma realidade que nos força sempre a estar criando alternativas criativas para manter o atendimento. E é uma realidade nacional, não depende de um hospital”, afirma.
Para ela, a principal justificativa para a falta de especialistas é a remuneração. “Nós não podemos dar aumentos salariais porque são servidores, e os aumentos precisam de ser aprovados e são limitados pela Lei de Responsabilidade Fiscal”, explica.
O quadro vivido pela rede Fhemig resume um cenário mais amplo. “A tabela do Sistema Único de Saúde (SUS) para pagar especialistas está muito defasada. Estamos falando em algo em torno de R$ 20 por consulta. Não vale a pena para o profissional que pode cobrar R$ 300 em atendimentos em consultórios”, explica o especialista em gestão de saúde Odarlone Orente. Segundo a pesquisa Demografia Médica do Brasil 2023, só 24,6% dos médicos residentes afirmam ter intenção de trabalhar integralmente no SUS.
Acesso à saúde evidencia diferenças
Saúde para quase todos. Apesar de ser um direito constitucional, o acesso a atendimento médico é uma realidade que evidencia as desigualdades no país. A população de capitais, dotadas, em sua maioria, de melhor infraestrutura, tem 14 vezes mais acesso aos médicos do que moradores de regiões metropolitanas e do interior.
Conforme o levantamento feito pela Associação Médica Brasileira (AMB), nas capitais há um médico para 163 pessoas, enquanto em municípios com até 10 mil habitantes o atendimento de 2.257 pacientes é feito por apenas um profissional.
“Essa é uma realidade que, geralmente, é consequência das condições precárias de trabalho que são ofertadas. Nenhum profissional vai escolher um lugar que não paga em dia, que não supre as necessidades para fazer um bom trabalho, que você pode ser vítima de violência”, relata Artur Oliveira Mendes, presidente do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais (Sinmed-MG). Ele critica a falta de plano de carreira atraente, com salários competitivos e infraestrutura nas unidades de saúde.
Ranking
Mesmo com a escassez de profissionais, Minas é o Estado com o terceiro maior número de médicos no país, atrás somente de São Paulo e do Rio de Janeiro.
https://www.otempo.com.br/cidades/falta-de-medicos-especializados-trava-atendimentos-em-mg-e-impoe-caos-1.2891641
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