Por Felipe Grandin, Henrique Coelho e Cássio Bruno, G1 Rio
26/08/2017 10h12
PMs, amigos e familiares foram homenagear o soldado Samir em enterro
(Foto: Reprodução/TV Globo)
O Rio de Janeiro chegou neste sábado (26) à marca de 100 PMs mortos só em 2017. O número indica que um policial é morto a cada 57 horas, pouco mais de dois dias. A média é a maior desde 2006, quando um policial foi assassinado a cada 53 horas.
A 100ª vítima foi morta neste sábado (26) na Baixada Fluminense. O sargento foi baleado próximo ao Largo do Guedes, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. Ele, que trabalhava em Magé, chegou a ser socorrido para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Nilo Peçanha, em Duque de Caxias, mas não resistiu a um tiro de fuzil na cabeça. A informação foi confirmada pela assessoria de imprensa da corporação.
Segundo o coronel Fabio Cajueiro, da Comissão de Vitimização da Polícia Militar, a Polícia do Rio está lutando em uma "guerra inglória". "Eu acredito que a população do Rio ainda não gosta de criminoso. E a gente tem outro problema: em qualquer lugar do mundo tem tráfico. Mas narcotráfico associado à arma de guerra e caçada a policial, a gente só vê aqui no Rio", lamenta Cajueiro.
A Baixada Fluminense é a região com maior número de mortes. Foram 27este ano, mais de um quarto do total. A maior parte das mortes ocorreu entre quinta-feira e domingo.
Em 2017, quase 60% desses PMs morreram durante suas folgas: 58. Até o dia 25, já haviam morrido em serviço 22 policiais, mais do que em todo o ano de 2015, quando morreram 18.
3 mil PMs mortos em 22 anos
Em média, um policial morreu a cada 64 horas no Rio desde 1995 e 2017. Foram 3087 durante este período. Essa é a conclusão feita a partir de estatísticas da Polícia Militar sobre a morte de soldados da corporação, a que o G1 teve acesso. A taxa de mortalidade entre 1994 e 2016, segundo a PM, é maior do que a de soldados americanos na Segunda Guerra Mundial.
Nos últimos 22 anos, 3,52% dos 90 mil integrantes do efetivo da PM do Rio morreram. Durante 3 anos e meio da participação americana na guerra, 405 mil soldados americanos morreram, o equivalente a 2,52% da tropa, composta por mais de 16 milhões de soldados.
"O número é maior do que as baixas do exército americano na primeira e segunda guerra mundiais. É 765 vezes mais fácil você ser ferido servindo na polícia do rio do que estando em guerras como a Guerra do Golfo", disse o coronel Fabio Cajueiro, oficial responsável por tabular as estatísticas.
Em 2017, a PM realizou uma mudança metodológica nos próprios dados: além de contar os policiais mortos em serviço e os que estavam de folga, a corporação passou a contabilizar também as mortes dos PMs reformados. Anteriormente, apenas as mortes causadas por perfurações de armas de fogo eram contabilizadas. Desde 2017, qualquer tipo de morte violenta também passou a entrar na estatística.
É nas folgas que os policiais são mais vítimas de mortes violentas. Das 3083 mortes ocorridas desde 1995, 2465 ocorreram durante a folga dos agentes, ou seja, 80% dos casos. No período, o número de policiais mortos em serviço foi de 598.
Se o problema já é antigo,o aumento entre 2015 e 2016 chama a atenção. Em 2015 foram 91 mortes, entre mortos em serviço e de folga. Já no ano seguinte, o número chegou a 146, um aumento de 60%.
Mortes de folga, colapso e 'culpa do estado'
Bruno Paes Manso, doutor em ciência política e especialista do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP), considera que três fatores podem ajudar a explicar os números:
"Você tem uma cultura que incentiva o bico dentro das polícias. Isso, com o passar do tempo, acabou ficando institucionalizado. O policial, quando trabalha na corporação, ele tem toda uma estrutura. Quando ele está de folga, é ele contra o mundo. Ele fica muito mais vulnerável. Existe também um medo de os policiais serem executados quando são roubados, além dos confrontos que acontecem todo dia", explica Paes Manso.
Segundo o especialista, o Rio adotou durante um determinado período uma política de combate ao crime relativamente mais eficaz durante a gestão de José Mariano Beltrame na pasta de segurança pública, entre 2007 e 2016.
"Os traficantes da ADA e do PCC conversando, eles falavam: 'Quando a gente faz guerra, o estado ocupa, então a gente parou de entrar em confronto'. Ou seja, tinha uma política pública, que produzia uma nova forma de se comportar. Hoje, temos uma fotografia de um estado em crise. É quase como se não existisse mais lei. A impressão é de que é uma selva, em que quem vence é o mais forte. A solução passa pelo fortalecimento do Estado e por um governante respeitado. Não adianta você botar só polícia. ", afirma ele.
A letalidade de policiais está ligada, segundo o ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais e especialista em Segurança Pública Paulo Storani, ao fato de o policial se sentir PM 24 horas por dia, e sempre impelido a agir, colocando-se em uma situação de risco e desvantagem.
"O policial, de forma geral, não se encontra na plena capacidade de exercer a sua capacidade, está sempre no déficit físico e psicológico. Na folga, quando ele deveria descansar, ou está no bico ou está no trabalho extra. Há então uma superposição de carga de estresse que logicamente leva a tomar decisões equivocadas. A tendência desse profissional é agir com a maior força que ele puder agir, e por isso que vários morrem durante a folga: eles não se omitem", avaliou o especialista.
Política de confronto
O ex-comandante da Polícia Militar, Ibis Silva, elege o próprio estado como o principal culpado por todas essas mortes. "O grande vilão é essa política pública belicista, de guerra às drogas, que gera morte e ódio. O estado é responsável por essas mortes, tanto no serviço ativo quanto na folga", afirma ele, classificando a política como "esquizofrênica", na qual a polícia militar é obrigada a apreender armas e drogas entrando nas favelas.
"Essa polícia então ela é empurrada para dentro da favela, para matar e para morrer. Isso para não falar do cenário federal, com uma política de drogas irracional e com a falta de uma politica de redução de homicídios e de circulação de armas e munições. Se você juntar isso tudo, você entende porque as UPPs entraram em colapso,e porque entramos nesse cenário catastrófico que temos hoje, e com tendência de alta".
Ibis diz ainda que o número de mortes de policiais está diretamente vinculado ao aumento de homicídios por intervenção policial. Segundo os dados do Instituto de Segurança Pública, desde 2003 até junho de 2017, havia mais de 12,8 mil casos registrados. De 2015 para 2016, o crescimento foi de 645 para 925, um aumento de 43%. Em março de 2016, foi registrado o maior número em um único mês desde maio de 2008: 123 casos.
"Esses dois números têm que ser pensados juntos. A polícia que mais morre é a polícia que mais mata. A redução de homicídios tem que começar pela redução da letalidade das polícias. Primeiro porque a Polícia é o estado, e segundo porque não podemos conviver com o alto índice de letalidade das políticas num estado democrático de direito. E quando isso acontecer, teremos uma diminuição da vitimização de policiais. Uma coisa está ligada à outra, ainda mais com essa política pública manchada de sangue. Se a gente não botar o dedo nessa ferida, vamos continuar produzindo esses números vergonhosos", finalizou.
Famílias sofrem com a saudade
Os assassinatos dos PMs deixaram um rastro de dor, sofrimento e saudade. Bianca Marins, de 28 anos, ainda está de luto. Ela é esposa do 1° sargento Márcio Leandro do Nascimento Marins, de 46. Lotado no 22° BPM (Maré) e há 22 anos na corporação, o policial foi encontrado morto carbonizado em 14 de fevereiro em um carro próximo à comunidade da Palmeirinha, em Marechal Hermes. Márcio deixou duas filhas, de 7 e 9 anos.
"Estou desorientada. Não sei mais o que fazer. O nosso Dia dos Pais foi terrível. O meu sogro teve que ir à festa da escola das meninas no lugar do Márcio. Não sei o que é passar um dia sem chorar" desabafou Bianca.
Inconformada com a violência no Rio, a esposa do PM não esconde a vontade de sair do país. Bianca lamentou a falta de apoio adequado do governo do estado, principalmente em relação ao atendimento psicológico. Ela contou que recorre à religião para tentar minimizar a perda do marido, com quem mantinha um relacionamento de 22 anos.
"Mesmo com parentes e amigos por perto, nós, viúvas, nos sentimos sozinhas. Depois dos crimes, acabou. É a gente e mais ninguém. Passa o tempo e os PMs viram estatística. Não temos apoio psicológico. Não temos apoio de representantes dos Direitos Humanos" disse Bianca.
Grávida de 8 meses, Michele Lima, de 33 anos, defendeu a aprovação de leis mais severas a bandidos que matam agentes público ligados à segurança pública. Michele é viúva do soldado Samuel Oliveira da Silva, também com 33. O PM morreu em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, depois que seu carro foi metralhado em uma suposta tentativa de assalto. Ele era lotado na Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) do Vidigal.
"Se não mudarem as leis, o Rio vai continuar enxugando gelo. A polícia prende e, depois, é obrigada a soltar o bandido", afirmou ela.
Michele revelou temer quando o filho, que receberá o mesmo nome do PM ao nascer, a perguntar sobre a história do pai.
"Será um desafio criá-lo. Nunca imaginei em ter um filho sem pai. A minha maior preocupação é que, quando ele crescer, queira saber o que aconteceu. Estou vivendo um dia de cada vez", disse.
Situação semelhante com a de Lucília Lance, de 29 anos. Em 20 de abril, nasceu Téo, 46 dias depois do assassinato do cabo da PM Thiago de Oliveira Lance, lotado na UPP Camarista Méier. Ele foi morto a tiros em 23 de fevereiro por dois homens que estavam em uma moto, a poucos metros de onde mora a família no bairro de Cordovil. Téo nasceu com 2,285 quilos e 47 centímetros e não conheceu o pai.
"Sinto que a minha vida está em suspenso. Eu lido com o luto da perda do meu companheiro e amigo, e lido com a missão e desafio de receber uma nova vida. Dificuldade que vem sendo amenizada com passar dos dias e desafios que vou vencendo e adquirindo maturidade e autoconfiança", relatou Lucília.
Secretário pede reforma nas leis criminais
O secretário de Segurança Pública, Roberto Sá, pediu novamente por mudanças na legislação criminal após mais um enterro (Foto: Reprodução/ GloboNews)
Desde que assumiu o cargo no lugar de José Mariano Beltrame, Roberto Sá se acostumou a frequentar enterros de agentes de forças de segurança. No último sábado, o secretário esteve no enterro do soldado Samir da Silva Oliveira, de 36 anos. Na ocasião, ele pediu reformas na legislação criminal do país e lamentou os 97 policiais mortos até então.
"É um número alarmante que nos deixa muito tristes, muito perplexos e que nos leva à seguinte reflexão: é uma polícia que está nas ruas, é uma polícia que se doa, são heróis que estão morrendo. Não tenham dúvidas que a gente mergulha nos nossos protocolos, nossas estratégias, dias após dia, para poder melhorar. Mas, me parece, que isso no Rio de Janeiro e no Brasil não tem sido suficiente para a gente ter uma sociedade cujo o criminoso reflita antes de sair praticando crime", disse Roberto Sá.
Segundo o secretário, enquanto as penas para criminosos não foram modificadas, a sociedade vai continuar a "sangrar".
"Nós precisamos exigir reforma na política criminal. Eu vejo reforma tributária, reforma política, reforma econômica, cadê a reforma criminal? Essa legislação te atende como cidadão? Você acha que três anos [de pena] inicialmente, para quem porta um fuzil para sair em 6 meses, é razoável? Vocês acham que quem tira uma vida de uma pessoa pode progredir de uma pena de 15 [anos] e sair com cinco, seis anos? Não é razoável".
O mundo não trata o crime assim. Sociedade que depende só da polícia para evitar isso é uma sociedade que vai "sangrar".
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/100-pms-assassinados-media-e-a-maior-em-mais-de-10-anos-no-rj.ghtml
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