sábado, 24 de setembro de 2016

A Morte de Ivan Ilitch’, de Tolstói, revela as mentiras da existência

Ilustração de Binho Barreto, reproduzida da Folhapress

João Pereira Coutinho
Folha

Amigo leitor: peço desculpa pelo uso abusivo da palavra. Eu não sou seu amigo. Nem você é meu. Não nos conhecemos e, francamente, melhor assim. Eu escrevo e, com sorte, alguém lê desse lado. É uma troca justa. E basta.

Aliás, por falar em amigos, quantos você tem? Cinco? Dez? Vinte? Melhor cortar o número para metade. Tempos atrás, li um estudo sobre as nossas falsas percepções sobre os amigos. E parece que só metade das amizades que julgamos sólidas são recíprocas. Na outra metade estão pessoas que não pensam em nós, pensam pouco ou até pensam mal.

Essas conclusões não me espantam. Experiência cotidiana: alguém fala que encontrou o personagem X e ele, eufórico, falou de mim como “grande amigo”.

Disfarço, por gentileza. Mas, se fizesse uma lista com as cem pessoas que passaram pela minha vida –da família mais próxima ao homem que me vendeu os jornais meia hora atrás–, o personagem X não estaria presente.

Aqui entre nós, quem é o personagem X? E, já agora, por que motivo tendemos a inflacionar o número de amigos que julgamos ter?

Fato: o conceito de “amizade” tornou-se uma caricatura, sobretudo quando é possível colecionar centenas ou milhares de “amigos virtuais” no mundo virtual. O pessoal confunde as coisas e julga que um “like” é uma jura de amor eterno.

Mas as conclusões do estudo também não me espantam por causa de um livro publicado há precisamente 130 anos. O autor é Lev Tolstói (1828″”1910) e o título é “A Morte de Ivan Ilitch”.

Primeira confissão: “A Morte de Ivan Ilitch” sempre me pareceu um erro. “A Vida de Ivan Ilitch” seria a titulatura mais apropriada porque é de vida, e não de morte, que Tolstói nos fala.

Sim, superficialmente, temos um homem que adoece com gravidade e que caminha para o seu cadafalso com a angústia e o ressentimento dos condenados.

Mas a novela de Tolstói é uma meditação avassaladora sobre as mentiras da existência “comme il faut”.

A expressão francesa é usada e abusada pelo narrador com propósitos irônicos, mas também descritivos. Ivan Ilitch era a promessa da família –e a promessa se cumpriu.

Estudou, formou-se, tornou-se funcionário judicial de sucesso. E procurou sempre uma vida “comme il faut” que estivesse à altura dos gostos da plateia. Teve um casamento “comme il faut”; uma casa “comme il faut”; uma carreira de magistrado “comme il faut”.

E, quando a harmonia doméstica começou a ruir, Ivan Ilitch resolveu o assunto “comme il faut”: casou-se com o trabalho e transformou a mulher em “hobby” suportável.

É perante esta gloriosa encenação que a morte surge como elemento dissonante –ou, se preferirmos, “pas comme il faut”. Ivan analisa a dor da enfermidade como se aquilo fosse um elemento estranho, injusto, “fora do lugar”. Nega a sua condição (morrer, eu?) e, quando a enfrenta, é devorado por um terror gélido (“sim, eu”).

Nas mãos de um escritor banal, a doença serviria para mostrar a Ivan Ilitch que as medalhas que ostentamos ao peito não nos protegem do fim inevitável e blá-blá-blá.

Para um monstro como Tolstói, a morte de Ivan Ilitch é a “via dolorosa” da sua salvação. Porque é a morte que permitirá ao personagem olhar para os outros e para ele próprio sem viciar “o fundo insubornável do ser” de que falava o filósofo Ortega y Gasset.

É, enfim, uma visão límpida e aterradora. A mulher e a filha, cansadas da agonia de Ivan, consideram-no um estorvo, um repulsivo estorvo que a morte tarda em levar.

E, quando recorda a sua vida, é na infância, e apenas na infância, que Ivan Ilitch encontra uma felicidade autêntica e sem sombra. A conclusão é trágica e, ao mesmo tempo, libertadora: enquanto subia aos olhos dos outros (“comme il faut”), Ivan Ilitch descia rumo ao naufrágio.

É esse naufrágio, essa falsificação espiritual que encontramos nos “amigos” de Ivan quando sabem da notícia da morte. Uns pensam nas suas carreiras (quem ocupará o lugar do defunto? haverá promoções?). Outros sentem alívio (“foi ele, não fui eu”). E todos suspiram com as obrigações sociais entediantes (ir ao funeral, consolar a viúva etc.). “The show must go on.”

Amigos? Temos dezenas, centenas, milhares. E assim continuaremos –autoiludidos e autocentrados– até chegarmos ao leito derradeiro onde estarão poucos ou ninguém.

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