sábado, 27 de outubro de 2012

Dirceu pede clemência ao tribunal que ele despreza. Então precisa ler um poema de Gonçalves Dias, ué!

27/10/2012 às 6:59

A defesa de José Dirceu, cassado por corrupção pela Câmara dos Deputados e condenado por corrupção ativa e formação de quadrilha pelo Supremo Tribunal Federal, encaminhou à Corte um pedido de redução de pena. O argumento principal: o “relevante valor social” do rapaz. O memorial, assinado por José Luís Oliveira Lima e Rodrigo Dall’Acqua, vejam vocês!, traz um série de depoimentos atestando que Dirceu lutou contra a ditadura e ajudou a democratizar o Brasil. Um dos que asseveram os valores do condenado é… Luiz Inácio Lula da Silva — que pode vir a ser, ele próprio, a depender das circunstâncias, um réu do mensalão (ver post de ontem).

Então fica combinado assim: ter lutado contra o regime militar, não importam a qualidade dessa luta e os meios empregados, não só dá direito à Bolsa Ditadura como também a uma espécie de “bônus” penal. Se esses novos varões de Plutarco se tornam corruptores e quadrilheiros, esse passado meritório deve ser levado em conta. É um acinte à inteligência e ao bom senso no mérito e, como diriam os ministros do Supremo, “na espécie”. Ademais, que história é essa de Dirceu pedir clemência a um tribunal que ele despreza? O nome disso é covardia!

Vamos ao mérito. Ao dosar as penas de um condenado, é claro que um juiz pode e deve levar em conta o seu passado, mas isso não se confunde com o viés evocado pela defesa de Dirceu. Se for réu primário — não tiver sido apenado antes —, com bons antecedentes, o condenado tende a receber uma punição mais branda; se o contrário, então mais dura. Com a devida vênia, a defesa de Dirceu tenta perverter esse fundamento, emprestando-lhe um viés militante, ideológico, quiçá partidário. Digam-me aqui: um outro no lugar de Dirceu, sem o seu passado de supostas glórias, deveria, então, receber uma pena maior do que a dele?

Até onde acompanho, o passado distante e o recente de Dirceu, no que concerne à sanção moral ao menos, deveriam ser usados como agravantes. Na juventude, diz-se, lutou contra a ditadura e o estado autoritário. Desde a juventude, pois, entende o significado do embate político e conhece suas balizas. Em tempos mais próximos, foi nada menos do que o segundo homem da República. Bastava estalar os dedos para que a máquina fosse posta à sua disposição. Justamente porque tinha tão grandes e tão graves responsabilidades; justamente porque concentrava tanto poder e podia mover tantas vontades, seus crimes se tornam especialmente graves.

Agora algumas considerações sobre o caso em espécie. José Dirceu — e já conversei com alguns contemporâneos seus — se especializou em adensar a própria biografia. Nunca foi um líder destemido, e disso todo mundo sabe. Mas não quero me perder nesse particular. Uma coisa é certa: a democracia que temos não lhe deve uma vírgula. Quando tentou criar um movimento à cubana no Brasil, com o seu “Molipo” (Movimento de Libertação Popular), estava em busca de democracia? Viria daí a sua “relevância social”?

O curioso é que essa linha de defesa já foi testada no tribunal pelo advogado de José Genoino, condenado por corrupção ativa (9 a 1) por um placar ainda mais amplo do Dirceu (8 a 2). Os ministros deixaram claro que seu passado não estava em julgamento. Alguns até deram a entender que, se estivesse, talvez fosse um bônus. Pegar em armas com o objetivo de instaurar uma ditadura comunista num país é uma dessas glórias que ainda estão para ser demonstradas, não é mesmo?

Agora a covardia
Dirceu já emitiu uma nota pública afirmando ter sido vítima de um julgamento de exceção. Sustenta que o STF o condenou sem provas. Na sustentação oral que fez, seu advogado afirmou que sua eventual condenação seria um “ousado” ataque ao estado de direito. Muito bem! Como é que Dirceu pode pedir clemência a um tribunal de cujos critérios ele desconfia? Como pode pedir clemência a um tribunal que estaria a conduzir um julgamento de exceção? Trata-se de uma contradição inelutável, não é mesmo?

Nessas horas, sempre lembro do Canto VIII do poema “I Juca Pirama”, de Gonçalves Dias. Alguns ex-alunos meus que andam por aí — de vez em quando, um deles me acha e se manifesta; felizmente, sempre para o bem — devem se lembrar de como eu gostava de dar aula sobre esse texto.

Reproduzo o trecho em que o pai deplora e amaldiçoa o filho que, feito prisioneiro, pediu clemência à tribo inimiga. E olhem que o jovem índio o havia feito por amor ao pai, para cuidar dele na velhice. Mas não se brinca com a honra nesses casos, disse o velho. Sabem cumé… Gonçalves Dias era um poeta romântico…

VIII
“Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.

“Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!

“Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.

“Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde festas como asco e terror!

“Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.

“Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sé maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és.”

Texto publicado originalmente às 5h52
Por Reinaldo Azevedo

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