Helio Fernandes
Ele morreu ontem, às 21,55, e às 22 horas as televisões já haviam mudado toda a programação. Avançaram na noite como Niemeyer avançou na genialidade. Niemeyer não era apenas o gênio do traço e da criação, era um extraordinário ser humano, daí a razão de eu ter colocado como título as três palavras-chave da Revolução Francesa.
Niemeyer no Alvorada Começou muito cedo, eclético, sabendo que seu destino, futuro e existência, estava indissoluvelmente ligado à criação e à humanização de tudo saía de sua prancheta. Em 1936, com pouco mais de 30 anos, foi convidado pelo Ministro da Educação (Gustavo Capanema), para fazer parte de um grupo de 10 arquitetos que realizariam a obra revolucionária, daqueles tempos e até hoje: o fabuloso projeto do Ministério. Maravilha.
Foram buscar na França o mais velho e já ultrafamoso Corbusier, para “supervisionar o projeto. Ele veio, gostou tanto do País que ficou 15 dias. Levado ao Ministério, ficou assombrado, e comentou: “Não há o que supervisionar. Nunca vi nada mais perfeito”, E foi para a Praia de Copacabana uma de suas admirações.
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PERFEIÇÃO
Estava corretíssimo. O Ministério da Educação nasceu perfeito, admirável e encantador.
Niemeyer não parou mais, criando, expondo, executando. Em várias partes do mundo, e aqui no Brasil. Só que ele mesmo não sabia que eram anos de plantação. Exatamente 20 anos depois, nos primeiros dias de janeiro de 1956, antes mesmo da posse de Juscelino, desembarcaria naquele espantoso e vasto deserto, que transformaria em Brasília, a mais sensacional das capitais do mundo.
Aquele deserto transformou-se em Novação, se constituiu no maior escândalo de todos os tempos. Aquele deserto foi doado a privilegiados de todos os privilégios. E se ética, moral, política e administrativamente Brasília é o que é, o arquiteto genial não tem nada com isso).
A primeira intuição-constatação de Niemeyer resultou numa construção arrojada, audaciosa e salvadora: a criação do lago Paranoá. Niemeyer “viu” logo que sem água, com aquele clima, quem se atrevesse a ir para lá, morreria torrado.
Imediatamente começou a levantar um lugar para trabalhar. Fez uma construção longa e horizontal, logo identificada como “Catetinho”. Moravam, planejavam e executavam, todos naquele local. E por decisão e convicção do próprio arquiteto, o espaço foi dividido com os trabalhadores. Niemeyer não admitia nem permitia discriminações.
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PRAÇA DOS TRÊS PODERES
Foram anos satisfatórios e impiedosos de trabalho 24 horas por dia. Mas o resultado ia aparecendo logo. Niemeyer planejava, executava, mas também rotulava. Ele já havia decidido: o centro de tudo, a concentração geral seria a Praça dos Três poderes.
Quiseram chamar de Praça Central. Obstinado, Niemeyer se consolidou no nome que escolhera. E hoje, não existe a menor dúvida, o centro de Brasília está ali, o Executivo, Legislativo e Judiciário coabitando e cumprindo o que está na Constituição.
É um milagre que Brasília, surgindo do nada e do inexistente, chegasse aos 50 anos cada vez bonita e glorificando seu criador. Os nomes do Planalto e Alvorada foram criação de Niemeyer. Quando estava quase tudo pronto, o arquiteto deixou Brasília, foi criar pelo mundo.
Fez a sede da ONU, glória espantosa, reverenciada com os murais de Portinari, dois brasileiros admirados pelo mundo. Em Paris, fez a belíssima sede do Partido Comunista, sem cobrar um franco que fosse. Em Roma, executou o projeto para instalação da sede da Mondadore, a maior editora da Itália. Lindíssima. Toda vez que ia a Roma, me empolgava com a genialidade. A última vez que vi foi em 1990, na Copa do Mundo da Itália. Infelizmente, a editora foi comprada pelo ex-Primeiro-Ministro Silvio Berlusconi, seguramente o maior corrupto do mundo.
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O AMIGO DE PRESTES
Nos anos 50, antes de Brasília, almoçávamos muito num restaurante de comida caseira, na Avenida Atlântica de antigamente. Nesse tempo, Oscar tinha escritório na Lapa, na rua que fica atrás da Sala Cecília Meirelles (uma das paixões de Carlos Lacerda, a poetisa e a Sala em homenagem a ela).
Quando o Partido Comunista ganhou a legalidade, Prestes voltou para o Brasil, Mas não tinha onde morar. Niemeyer, sem a menor hesitação, deu para ele o escritório da Rua Joaquim Silva. Já morava na Estrada das Canoas, numa casa que construiu para ele mesmo. Belíssima, metade subterrânea, metade admirada por que passava por ali.
Mais tarde foi morar no duplex do fim da Avenida Atlântica, construído em frente onde ficava o antigo Cassino Atlântico. Muitos anos depois, fundiu o escritório com a residência. Era enorme, mas impossível de agregar as dezenas de amigos que estavam presentes diariamente.
Pode-se dizer que mesmo tendo ultrapassado os 100 anos, não deixava de trabalhar. Sua fascinação era o traço, que mais do que uma criação, parecia obsessão, mas na verdade era obstinação.
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EM BRASÍLIA
Para Niemeyer, Brasília nunca estava pronta. Sempre encontrava alguma coisa para completar ou corrigir. Na primeira vez que voltou à capital, foi “dar uma volta” para conferir como estavam as coisas. Na Câmara dos Deputados, estarrecido e assombrado, viu o que os deputados haviam feito.
Toda a obra de Niemeyer privilegia grandes espaços públicos. Na Câmara não foi diferente. Corredores larguíssimos, gabinetes muito menos. Os deputados não tiveram dúvida: removeram as divisões, fragilíssimas, aumentaram seus gabinetes. Oscar procurou o presidente da Câmara e fez a proposta, logo aceita. Sem cobrar nada, daria mais espaço aos deputados, refazendo a grandeza dos corredores.
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P S – Nada mais sensato e até obrigatório, que o velório de Niemeyer fosse no Planalto. Assim, centenas de milhares de pessoas pudessem se despedir dele.
PS 2 – Logicamente não pude ir. Mas aqui no meu escritório, uma criação dele, de 1978, e a dedicatória do próprio punho: “Um dia o povo ouvirá o que tem de ouvir, e terá respeitada a Liberdade e os direitos humanos”. Num quadro, uma foto do repórter saudado o gênio, no Tribunal de Justiça. Mas na verdade, o espanto geral foi com os 20 minutos, sem interrupção, de reminiscências do próprio Oscar.
PS 3 – Niemeyer foi preso pela ditadura, não ficou um dia. Começaram a interrogá-lo: “O senhor é comunista?”. Oscar disse um palavrão imortal, respondendo: “Vocês sabe, então por que a idiotice da pergunta?”. Saíram da sala, logo depois era solto.
PS 4 – Se Niemeyer fosse torturado e morto, a ditadura teria acabado ali, não sobreviveria à repercussão nacional e internacional. Muito não conheciam o episódio, incluindo o palavrão. No Tribunal de Justiça, nunca um palavrão foi tão retumbantemente ovacionado.
Transcrição do Blog Tribuna da Internet
http://www.tribunadaimprensa.com.br/