domingo, 7 de fevereiro de 2016

FÉ: UM MODO DE VENDER ATÉ INGRESSOS DE CINEMA



Jacques Gruman
Carta Maior

Ar condicionado perfeito. O slogan da finada cadeia de cinemas Metro não era para inglês ver. Quando o Menino saía mais tarde do colégio, na praça Saens Peña, dava uma passadinha na porta do Metro Tijuca e sentia a brisa gelada que não tinha em casa. Ar condicionado era coisa de granfino. Foi naquela sala que assistiu “Ben-Hur”. Hollywood investia em superproduções bíblicas e era chegada a histórias inspiradas nos mitos religiosos.

Não entro nas minúcias deste épico, estrelado por um Charlton Heston no auge da fama e do vigor físico. É um daqueles blockbusters xaroposos, que, na época em que foi lançado, atraiu grande público. Revi-o recentemente. Os olhos do adulto sepultaram a magia que persistia na memória do Menino. O protagonista, comerciante rico em Jerusalém, improváveis olhos azuis, é um colaborador assumido da potência ocupante (Roma). Claro que o filme sequer insinua isso: Judá aparece apenas como um poço de virtude, beijinho no ombro e cheio de amor para dar. A vida corre mansa, até que ele se desentende com um chefe militar romano, que o manda como escravo para as galés.

Dá a volta por cima e, ao voltar para casa, descobre Jesus (que cura da lepra a mãe e a irmã dele). Pronto, é disso que o filme trata: proselitismo puro e duro. Corridas de bigas turbinadas, cenários suntuosos, atores badalados, tudo correia de transmissão para um trabalhinho missionário. Sem muita sofisticação. Ironicamente produzido pelo estúdio de Sam Goldwyn e apreciado por muitos judeus.

MAIS UM DEMILLE
Poucos anos antes de “Ben-Hur”, o mesmo Heston abriu o mar e liderou os hebreus na fuga do Egito. “Os Dez Mandamentos” foi um dos mais bem sucedidos empreendimentos de Cecil B. DeMille (que Carnaval Atlântida satirizou como Cecílio B. DeMilho). Sucesso que a Igreja Universal do Reino de Deus tenta repetir agora, no filme que ocupa um terço de todas as salas de exibição do país. O que está por trás desta avalanche comercial-religiosa ?

Faz muito que correntes neopentecostais se organizam como empresas. Praticam uma estratégia clara de conquista de mercado (via proselitismo agressivo, aliado ao uso extensivo técnicas populistas). Os produtos da concorrência são desqualificados. Parte dos lucros é reinvestida no negócio, para multiplicar, sem milagre e mais à frente, a massa de lucro. Lobbies são formados nos espaços de poder e se instala a promiscuidade com políticos.

Em 2014, a Igreja Universal do Reino de Deus inaugurou, em São Paulo, o majestoso Templo de Salomão. Edir Macedo, paramentado como rabino (!), recebeu a presidente e o vice-presidente da República, ministros de governo, desembargadores e políticos de coturno variado. Demonstração clara de força política. As empresas religiosas recebem isenções fiscais e seu lucro é um mistério mais bem guardado do que a Arca da Aliança. Têm braços multinacionais e não param de crescer.

BATENDO RECORDES
A versão macediana do Êxodo já nasceu batendo recordes. Teve uma pré-venda de 3,2 milhões de ingressos (o último Star Wars não passou de 600 mil). Filiais da IURD divulgaram maciçamente o filme, e, de acordo com reportagens da Folha de São Paulo, ajudaram a vender ingressos com preços promocionais. Ação empresarial de grande envergadura, à qual não faltou a presença de colunáveis enfeitando o bolo. Sob essa espessa camada de “empreendedorismo”, aonde fica, afinal, a mensagem religiosa ?

O que me incomoda é que, na operação de disputa pelo mercado da fé, o sucesso financeiro contribui para entorpecer ainda mais os consumidores. Lendo os comentários de espectadores, tenho a impressão de que eles assistem as imagens como reprodução documental da realidade. Deus não é apenas uma cidade cenográfica, um efeito especial. Está ali, de verdade. Dificilmente se disporão a questionar os valores que vazam pelos poros da história.

HOUVE O ÊXODO?
Uma aproximação arqueológica passa longe da narrativa oficial. Mais de cem anos de extensa e intensa investigação histórica e arqueológica na região do delta do Rio Nilo não revelou um único traço do Êxodo. Não existe nenhum registro deste evento monumental nas crônicas egípcias daquele tempo. Arqueólogos israelenses vasculharam minuciosamente as areias do deserto do Sinai entre 1967 e 1982, e não descobriram um vestígio sequer da suposta jornada de quarenta anos. O rabino norte-americano Peter Schweitzer perguntou:“Se não podemos aceitar o Êxodo como um fato histórico, pois sabemos que ele é uma lenda, por que continuamos a contar a história ? Como manter, nesse caso, nossa honestidade intelectual ?”. O que poderia ser lido como uma parábola, com enredo mágico e toques poéticos, se transforma em dogma e instrumento de poder. Plante medo e colha os profetas da salvação.

Que dizer, então, do que se poderia chamar do Lado Negro do Êxodo ? 
Os hebreus passaram, pela versão oficial, por 400 anos de escravidão. Por que tanto sofrimento, se uma ação divina, de acordo com os religiosos, poderia eliminá-lo muito antes – ou mesmo impedir que tivesse acontecido ? Quando, segundo a tradição religiosa, Deus decide pela libertação, ele o faz com uma enorme demonstração de força. Midiática. Com seus poderes monumentais, poderia, simplesmente, congelar ou adormecer o faraó e seu exército, deixando o caminho livre para os cativos. No entanto, a solução foi submeter todos os que moravam no Egito, aí incluídos outros escravos, mulheres, crianças e anciãos, a dez terríveis pragas, para amolecer o coração do faraó. 
Punição coletiva, que a moderna legislação internacional condena com veemência. Matar todos os primogênitos? Destruir plantações e matar de fome indiscriminadamente ? Inocentes foram eliminados para punir a recusa da classe dominante em liberar os hebreus. Como explicar essas monstruosidades ? Que raio de CEO preside esta companhia ?

UM RICO NO REINO DOS CÉUS?
Bem sei que Razão e fé vivem se estranhando. Em festa de inhambu, jacu não entra. Nada contra os que encontram na introspecção religiosa a sobriedade e o estímulo para viver. Não sou como eles, mas os respeito. Tudo contra os que se aproveitam das carências populares para construir impérios em nome da religião. Onde é mesmo que li que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos Céus”?

(artigo enviado pelo comentarista Mário Assis Causanilhas)

http://www.tribunadainternet.com.br/fe-um-modo-de-vender-ate-ingressos-de-cinema/

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